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A sardinheira

Corria o ano de 1949, quando ainda se lambiam as feridas profundas causadas pela II Guerra Mundial, e a fome varria, sobretudo, o interior do país.

A Micas do Brejo de Cima ia já no sexto filho que, de tão pequeninos, cabiam num cesto. Viviam todos numa humilde e tosca casa feita de pedras enormes.

A única riqueza vinha-lhes do cultivo de pequenas leiras que herdara dos pais e da criação de alguns coelhos, galinhas poedeiras e frangos, estes só para dias de festa ou quando alguém acamasse.

Para ganhar algum dinheiro, deixava os filhos entregues à filha mais velha e ia trabalhar à jorna, na lavoura, em propriedades dos mais abastados da terra.

De sorte que, quando algum dos ditos galináceos anunciava, com grande alarido, o nascimento de mais um futuro pinto, a notícia era recebida com grande satisfação no seio da numerosa prole. Dia de três ou quatro ovos representava peixe à mesa (coisa rara!), para toda a família.

Até parecia que por ali andava Santo António a fazer milagres! Mas era assim mesmo. A Micas do Brejo, embora analfabeta, fazia contas que nem o Bernardo da venda.

Senão, vejamos:

A sardinheira, uma velhota “que nunca mais morria”, como costumava lamentar-se sempre que chegava a casa de uma freguesa, cansada e cheia da vida que levava, transportando numa desengonçada canastra, as sardinhas “ardidas” –ardidas, porque quando chegavam à encosta da serra, “ardiam” na boca de tal forma que a “empolavam”… – vendia e comprava, que os tempos já nessa altura, não iam de feição para aquele tipo de negócio.

Descia à estação dos caminhos-de-ferro de Caldas de Aregos para comprar as sardinhas, trepava pelos caminhos da íngreme serra, para depois as vender, casa a casa, por atalhos previamente estudados de forma a servir o maior número de freguesias e a horas convenientes, onde era esperada antes do almoço.

Como o dinheiro escasseava, a peixeira aceitava como pagamento ovos ou os próprios galináceos que, no dia seguinte, embarcariam com destino aos mercados do Porto.

Nesse tempo ainda não tinham inventado os aviários…

Aqui entra a contabilidade:

Um ovo era trocado por uma sardinha, cada sardinha dava para dois filhos. Feitas as contas, três sardinhas, seis filhos. Comprava quatro, que também ela precisava de sobreviver…

Se as galinhas se portassem bem, alguns dos filhos mais velhos até podiam comer uma inteira, especialmente aqueles que já ajudavam a trazer a lenha do monte.

Os pais da pequenada (alguns reincidentes), para além da sua ativa participação no ato propriamente dito, deixavam para a Micas as preocupações, sobretudo alimentares, de tanta boca faminta.

Valiam-lhes os ovos e o cultivo dos brejos. Moira de trabalho, mas generosa e simples, feliz com a sua gente, nunca se queixava. Tinha os filhos e isso bastava-lhe.

Há dias que naquela casa não se comia sardinha (a pescada dos pobres, como costumava dizer-se), mas prometeu:

– Amanhã vem a sardinheira. Vamos todos comer sardinha!

Foi uma festa antecipada entre a filharada. Juntando mais dois ovos aos que já tinha, podia trocá-los pelo desejado peixe.

Mas as coisas nem sempre são assim tão lineares. A hora de chegada da Sardinheira aproximava-se e o raio das galinhas não deitavam cá para fora o esperado ovo. Muito entretidas a picarem no chão e a cacarejar entre si, nem reparavam na aflição que estavam a provocar.

Micas teve então uma ideia luminosa: molhou o dedo mindinho na água, depois meteu-o em sal grosso e, de seguida, introduziu-o no sítio que sabemos, para abreviar a postura. E ficou à espera.

Passados poucos minutos, as galinhas cantaram, anunciando a boa-nova!

E foi assim que naquele dia e para alegria da pequenada houve uma sardinha inteira para cada um, sardinha que pingava na broa e ardia na boca.

Agora digam lá se o velho rifão “não contes com o ovo no cu da galinha” está certo?

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