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A Filarmónica

Em termos estatísticos, S. Cipriano ainda hoje é a freguesia do concelho de Resende com mais músicos por metro quadrado.

A existência de duas bandas, numa pequena povoação, para mais atingida pela sangria da emigração, diz bem do amor que as suas gentes têm dedicado à arte do solfejo, ao longo dos tempos.

Todavia, estas duas nobres instituições não passaram apenas por momentos altos, mas também por períodos de vida difícil.

Recordo, por exemplo, quando em tempos de crise, um dia surpreendi o “mestre” Abel Monteiro – o Procurador – a ruminar sobre as razões que teriam levado ao desmembramento da sua filarmónica.

– Isto não me sai do toutiço! Temos bons músicos, belos instrumentos, o povo adora… Então, por que é que a Banda não toca?

E, coçando a cabeça em desalinho, abriu paulatinamente o velho armário de castanho e pôs-se a mirar todo aquele instrumental luzidio. Era uma pena!

Se não fosse ele estaria manchado de verdete.

Lá estava o trombone do Zé das Devezinhas; o clarinete do Estrefe, o saxofone do Pedro, o cornetim do Maneta e a caixa sarapintada do Quim, amante da pinga mas com uma vocação e uma genica de todo o tamanho.

Dizem que o vinho relaxa as pessoas!

Então haviam de ver o Amarelinho do Casalinho a tocar! O malandro, antes de se exibir, “entornava” três ou quatro soberbos copos, arregaçava um pouco as mangas da farda e… pistões duma figa!

Era de facto um homem alma grande diante de uma partitura musical.

MÚSICO TEM PRESTÍGIO

– Que Banda! – continuou, com saudade, Abel Monteiro. Havia fardas azuis para o inverno e cinzentas para o verão. Os instrumentos eram metidos em sacas bordadas com esmero, muito bem protegidos e um músico era pessoa de respeito. Passasse por onde passasse, na vila ou no campo, toda a gente lhe tirava o chapéu.

Em S. Cipriano sempre assim foi. Os pais ensinavam aos filhos a maravilhosa arte dos sons mesmo antes de o professor lhes ministrar as primeiras letras.

Então, que motivos levaram a filarmónica a deixar de tocar?

É sobre isso que Abel Monteiro continua a matutar, sismático, diante do velho armário de castanho. Furibundo, barafusta com o seu imaginário interlocutor:

– Deram cabo disto, foi o que foi! Deram cabo disto!…

Abel Monteiro, bom músico, excelente “provador” da pinga e namorador de moça séria e casadoira, as quais olhavam primeiro para os seus galões de “mestre”, a seguir para a batuta e, só depois, para a boa figura que era quando tinha sangue na guelra, continuou absorto nos monólogos:

– Um músico é um senhor, tem prestígio. O “Ferreiro”, que sempre foi um espantalho, não casou com uma das moçoilas mais ricas da terra?

A “sala de ensaio” está vazia. Os bêbados aproveitam a semi-escuridão para urinar no pátio, às escondidas, sem um mínimo de respeito pela instituição. E se Mestre Abel insiste em proclamar os benefícios da música, alguns palermas põem-se a rir.

– Calculem que há dias apareceu cá um burro carregado de livros a querer comprar os instrumentos e as partituras!, diz-nos, indignado. Mas isto é sagrado. E este armário vai continuar a guardar, pelo menos enquanto eu for vivo, todo este instrumental, que ainda não é peça de museu.

Temos como certo que um homem morto vale mais que um homem vivo. A História tem-nos dado “belos” exemplos. Aconteceu com grandes vultos das Artes e das Letras, a quem só morte libertou do sofrimento e da miséria.

Salvo as devidas proporções também com “mestre” Abel foi preciso que, cansado de lutar, um dia tivesse “resolvido” despedir-se da vida para que os amigos – e era toda a aldeia, afinal – ouvissem os seus desesperados apelos.

– A melhor homenagem que lhe podemos prestar é reagrupar os músicos e pô-los de novo a tocar! – diziam, amargurados, os mais íntimos, durante o velório.

E foi assim que, finalmente, os polidos instrumentos saltaram do velho armário de castanho e voltaram a brilhar à luz do dia, entoando nesse momento dramático, não as alegres rapsódias de que Mestre Abel tanto gostava, mas uma sinfonia triste, sinfonia que o acompanhou até à última morada…

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