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Desventura 

© lusa

Conforme se tem acertadamente assinalado, uma das conclusões mais evidentes, em Portugal, dos resultados das recentes eleições para o Parlamento Europeu foi que o Chega!, em essência, é André Ventura. Pergunto-me se, para além do carismático presidente, os portugueses, na sua maioria, conhecerão, sequer pelo nome, algum outro elemento do partido. E é provável que o fraco resultado obtido por Tânger Correia, o candidato escolhido como cabeça de lista, fosse ainda mais pálido se Ventura não se tivesse envolvido pessoalmente na campanha (o que, de qualquer modo, é prática habitual em processos eleitorais). 

O Chega! teve uma ascensão fulgurante — fundado em 2019, elegeu, logo nesse ano, um deputado à Assembleia da República; nas eleições seguintes, três anos mais tarde, passou para 12; e, nas de 2024, com escassos cinco anos de idade, mais do que quadruplicou o seu grupo parlamentar, conseguindo 50 deputados e um eufórico terceiro lugar entre as forças partidárias portuguesas (sempre pelo critério da percentagem de votos do eleitorado). Era, pois, natural que gerasse mal-humorados anticorpos no espetro político-partidário, sobretudo por parte dos grupos que se sentem visados por André Ventura no seu ataque ao que aparenta tratar como corrupção sistémica, interesses instalados e o politicamente correto que, desde a revolução de 25 de Abril de 1974, a chamada esquerda tem imposto como agenda política e idiossincrasia bem-pensante em Portugal. 

É provavelmente isto que explica a celeuma do passado dia 17 de maio na Assembleia da República: 

Discutia-se a construção do novo aeroporto de Lisboa, que se prevê durar uma dezena de anos, e André Ventura questionou se seria necessário um prazo tão longo, invocando o exemplo do aeroporto de Istambul, pronto num prazo de cinco anos. 

Permita-se-me um aparte: o aeroporto de Istambul é de facto uma das mais notáveis infraestruturas do género a nível mundial. Desde logo pelas dimensões: o trajeto de uma aeronave entre o momento em que toca a pista e o momento em que estaciona junto a uma porta de desembarque pode demorar cerca de meia hora; e, entre uma porta de desembarque e a porta de embarque seguinte, o passageiro em trânsito poderá ter de caminhar quilómetros (em passo relativamente acelerado). Porém, a sinalização é clara e eficaz e há pequenos comboios elétricos para transportarem bagagens de mão e passageiros com mobilidade reduzida. E nem menciono a excelente distribuição, em todo o espaço, de cafés, restaurantes e lojas requintadas. Moderníssimo. 

Para André Ventura, se os turcos, que «não são propriamente conhecidos por serem o povo mais trabalhador do mundo», conseguiram montar aquela infraestrutura aeroportuária em cinco anos, porque precisarão os portugueses de dez? 

Em meu entender, André Ventura quis dizer que não é indispensável ser uma modelar Suíça, uma Singapura ou um Luxemburgo para trabalhar bem e com rapidez. Mas poderia, digamos, escusar de fulanizar a sua argumentação ou, alternativamente, recorrer a uma comparação positiva. Citar o povo turco em tom displicente foi, no mínimo, infeliz e deselegante. E por aí deveriam ter ficado as críticas ao líder do Chega! Mas a esquerda (ou, pelo menos, uma certa esquerda) ia lá desperdiçar a ocasião de atacar o adversário político mais perigoso e odiado… No seu afã de se exibir como politicamente correta e vanguardista, chegou ao ponto de falar em «discurso de ódio»! Depois, como o presidente da Assembleia da República, José Pedro Aguiar Branco, não cortou a palavra a Ventura, optando antes por declarar que qualquer deputado era livre de exprimir as suas opiniões (tornando-se, obviamente, alvo do juízo público e até, no limite, de apreciação judicial), a dita esquerda, perdendo a noção das proporções e do propósito, já exigia a demissão do presidente da AR. 

Um amigo, que reputo nada afeto ao ideário do Chega!, assinalou-me que se devem evitar generalizações, como, entre outras, a de que os deputados têm a reputação de não fazer nada. Amargamente, respondi-lhe que, a julgar pela ridícula tempestade num copo de água em torno de um alegado episódio de «racismo antiturco», alguns deputados portugueses pareciam merecê-la. 

Do que aqui escrevo, não se infira que sou adepto de André Ventura. Fique claro que o partido por ele fundado e dirigido colide com as minhas convicções: desde logo, porque me considero laico e, no mínimo, liberal em matérias da esfera social; ora, o conservadorismo de Ventura, expresso, por exemplo, na sua colagem a práticas de catolicismo acrítico, configura, desde logo, demagogia e oportunismo político; por outro lado, o seu obscurantista ataque à lei da eutanásia, baseando-se em argumentos que não pode deixar de saber que são falsos (cf. https://bomdia.eu/referendarem-um-direito-meu/, publicado em 31.03.2023), bastaria para marcar a minha oposição inconciliável. Mas, independentemente disto, prezo a razoabilidade e o sentido das proporções, sobretudo por parte de quem se diz — e é — um colégio de representantes do povo português por cujos verdadeiros interesses deveria pugnar com seriedade. 

E isto conduz-me a uma recente manifestação pública (e no estrangeiro, ademais) de André Ventura. No passado dia 19 de maio, reuniu-se em Madrid o Viva 24, evento promovido pelo partido espanhol Vox com a presença de líderes da extrema-direita internacional: do Chile, da Argentina, da Polónia, de Israel, da Hungria, da Itália… de Portugal. 

O ex-deputado chileno José Antonio Kast e o atual presidente da Argentina, Javier Milei, falaram, naturalmente, em castelhano, tal como os anfitriões (José Antonio Ortega Lara e Santiago Abascal, do Vox). Os representantes dos demais congéneres — Marine Le Pen, do francês Rassemblement national, Viktor Orbán, do húngaro Fidesz, Georgia Meloni, do italiano Fratelli d’Italia — não hesitaram em se expressar nas respetivas línguas. Quanto a André Ventura, o que fez foi uma lamentável figura de subserviência, discursando num tosco españuel, como quem presta vassalagem ao suserano. E é este o presidente de um partido que se insurgiu contra o facto de o Vox, em mais de uma ocasião, ter divulgado mapas da península Ibérica com Portugal imerso na Espanha: a 12 de outubro de 2021, em comemoração do Día de la Hispanidad, também designado Día de la Raza ou ainda Fiesta Nacional de España, aglutinado com o Día de las Fuerzas Armadas, o Vox publicou pelas redes sociais espanholas um mapa-múndi no qual não só toda a península Ibérica aparece em tom vermelho maciço, como todo o antigo império ultramarino português e todo o antigo império ultramarino espanhol são uma só mancha indistinta: https://www.publico.pt/2021/10/12/politica/noticia/espanhois-vox-voltam-mostrar-portugal-anexado-espanha-1980868.

Exatamente como se ignorassem, ou pretendessem ignorar, que Portugal é um país com identidade e história à parte.

Note-se que os protestos e as exigências de desculpas do Chega!, numa patética defesa do brio lusitano, nunca tiveram resposta por parte do Vox. 

Deplorável. 

Jorge Madeira Mendes

PS: Apesar do tempo já transcorrido sobre os acontecimentos em referência, mas desejando afastar qualquer cheiro de eleitoralismo a favor de uns ou contra outros, é propositadamente que publico estas lucubrações só depois das eleições europeias. 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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