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Um cão deitado à fossa

Carla Pais, escritora portuguesa residente em Paris é autora obras literárias premiadas. Em 2015 venceu o Prémio Literário Horácio Bento Gouveia com o conto «A Alma do Diabo». Em 2016, o seu conto «O búzio do meu pai» foi selecionado para a antologia A infância, promovida pelo Centro Mário Cláudio. E, em 2017 foi-lhe atribuído o Prémio de Poesia Francisco Rodrigues Lobo, pela obra “A Instrumentação do Fogo”. O seu primeiro romance, “Mea Culpa”, foi indigitado para o Prémio Revelação Agustina Bessa-Luís e granjeou um enorme reconhecimento por parte do público e da crítica.

“Um cão deitado à fossa” é o mais recente romance da escritora portuguesa Carla Pais. Este romance, vencedor do prémio literário cidade de Almada 2018, transporta-nos para um ambiente rural, algures no interior de Portugal, onde os sentimentos são por vezes tão escassos, como todo o ambiente humano e emocional que compõe estas vidas.

A narrativa transporta-nos para o espaço temporal onde evoluem 3 gerações. São 3 gerações marcadas pela violência, pela submissão feminina face a uma cultura bem enraizada do patriarcado, do poder absoluto do homem em relação à mulher, relegando-a para um papel de objeto, de quase invisibilidade no seio da estrutura familiar. Homens e mulheres marcados pelo desamor, pela desconstrução dos afetos. Vidas sujeitas aos ritmos das estações mais agrestes, à implacável solidão das serras e de quem evolui preso aos fantasmas mais sombrios do passado. Vidas construídas debaixo do jugo da agressividade física, verbal e moral.

Urbano e Ofélia são os dois personagens centrais da história. É através deles que outras vidas, outros personagens dentro da construção narrativa se desvendam, num encadeamento sucessivo de existências amarguradas, presas aos dilemas e fantasmas do passado que lhe pesam nos dias.

Urbano, uma criança mal-amada, rejeitada pelo pai em detrimento do outro irmão. Urbano marcado pela violência feita contra a mãe “porque choras, mãe?”. Os dois, mãe e filho, tomados pelo sentimento de abandono, de rejeição. Confundidos com o pó dos dias e a matéria que os rodeia. O pó da madeira onde se sentem soterrados “Tão baixos os olhos de quem é feito de pó. Eu, A mãe. O Senhor, pai, madeira. Crosta velha de madeira a saltar dos dentes da serra. A Fábrica inundada de si. E nós quase lama, de olhos abaixados, os dois feitos de pó, (p.7)”.

Ofélia, uma menina apaixonada que se casa com Urbano. “lembras-te? As cantilenas que trazíamos a roçar a língua, as noites brandas debaixo do amor e tu tão bonito (p.27)?”  Ao logo dos anos e depois do nascimento dos filhos a violência e o desamor ganha espaço e Urbano reproduz o comportamento do pai.  Os filhos do casal crescem, como Urbano, a conhecer de cor a cor do medo, a ver nos olhos da mãe a infinita tristeza de quem se sente rejeitado pelo objeto do seu amor. De quem se sente apenas uma coisa no meio de outros pertences do marido. Uma mulher desfeita pelas traições e pela ausência de afeto. “Uma mãe sem medo de matar, porque toda ela era morte, matéria arruinada naqueles dias em que a cerveja, o vinho e as putas lhe tomavam o pulso e o ódio (p. 174)”.

Carla Pais faz-nos refletir sobre a incapacidade amar quando nunca se teve alguém que ensinasse a conjugar o verbo no espaço e no tempo da existência. Faz-nos, também refletir, sobre a influência do comportamento dos pais no crescimento dos filhos, da violência silenciosa que se exerce sobre eles. “De que são feitas as bestas, senhor? (…) de que são feitos os filhos, senhor? De como essa violência pode ser tão marcante na construção da relação ao outro.

Com que fios invisíveis se tece a maldade humana?

Quando e como tomamos consciência, nas nossas vidas, de que todo o amor que não soubemos dar, que não tivemos capacidade de retribuir, foram vidas desperdiçadas?

Que evento terá de acontecer ao longo da vida que nos faça olhar para dentro e ver toda a verdade daquilo que se perdeu?

Quando tomamos consciência do tempo que nos resta para a redenção? Será que temos tempo?

São questões que se podem colocar ao ler este romance. Questões transversais numa sociedade localizada onde amor foi sempre tão escasso e o desafeto tão presente.

 A autora revela neste romance, com uma linguagem profundamente realista o sentido mais despido e cruel da existência humana. “Admitindo-se que uma obra fala do mundo, exige-se dela, em todo o caso, que elimine os bons sentimentos e nos revele o horror definitivo da vida, sem o qual ela se arrisca a parecer “insuportavelmente ingênua (Todorov, 2009, p. 71)”.

O Romance, “Um cão deitado à fossa” é muito mais do que esta breve análise. É um romance a descobrir por cada leitor. “A literatura pode nos tornar mais próximos dos outros seres humanos, pode nos fazer compreender melhor o mundo, pode transformar cada um de nós a partir de dentro (Todorov, 2009, p. 76)”.  É nesta tentativa de partir de dentro, de olhar para os sentimentos do desamor e desencantamento que transformam o homem num ser por vezes amargo, por vezes desprezível. Mas também, para a capacidade humana de redenção, de emotividade, de descoberta de sentimentos ancorados nas profundezas da alma, um ser humano capaz de transforma-se, de redefinir o futuro e modificar a história familiar.

São Gonçalves

Bibliografia: Todorov, T. (2009). A literatura em perigo. Difel.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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