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Thelma Guedes: “o verbo do escritor é escrever”

Um dos mais destacados e criativos nomes da teledramaturgia brasileira (Cama de gato, Cordel encantado e Joia rara, todas em parceria com Duca Rachid) Thelma Guedes é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), autora de dois livros de contos (Cidadela ardente e O outro escritor), um de poesia (Atrás do osso), de um fecundo ensaio sobre a escritora Patrícia Galvão (Pagu, literatura e revolução), além de participar de algumas importantes antologias (Novelas, espelhos e um pouco de choro, Dez amores, Histórias do olhar e Álbum de fotos).

Sartre, em Que é a literatura, diz: “Pode-se encontrar, sem dúvida, na origem de toda vocação artística, uma certa escolha indiferenciada que as circunstâncias, a educação e o contato com o mundo só mais tarde irão particularizar.” Concorda com tal afirmação?

Concordo. Acredito que surge em algumas pessoas, desde muito cedo, uma espécie de chamado, um desejo inexplicável, às vezes incontrolável, de expressão artística. Desejo esse que vai sendo moldado e transformado em capacidade, por meio da apreensão de valores e ferramentas que o mundo nos fornece, pela educação formal ou não. Eu tive um chamado sim, que se manifestou logo na infância. Em todas as brincadeiras, eu me apresentava como uma grande “inventadora” de histórias mirabolantes. Quando aprendi a ler, tudo o que caía nas minhas mãos eu devorava! Do prazer que eu tinha com a leitura, nasceu uma imensa vontade de escrever. Quando li Memórias de Emília, da coleção do Monteiro Lobato, logo quis escrever as minhas. Desisti por falta de assunto! (rs). E eu escrevia poesias o dia todo. Ficava atrás da minha mãe lendo as poesias que eu tinha acabado de escrever, atormentando a coitada! Botava meus parentes sentados para ouvir meus poemas, que eu declamava. Até um dia que eu li um conto de Clarice Lispector, Legião Estrangeira. Fiquei tão impressionada, que naquele momento de verdadeiro êxtase, eu decidi que seria escritora pra valer.

Em seu primeiro livro de contos, Cidadela ardente, de 1997, há uma evocação às esferas infernais d’A Divina Comédia . Por que tal evocação?

Eu tinha acabado de reunir esse conjunto de contos para publicar como livro. Estava procurando um título para ele. Coloquei os contos numa ordem que me agradava e que fazia algum sentido pra mim. Depois, procurei alguma unidade entre eles. Percebi, então, que o sentimento que os alinhava é o desamparo de todos seus personagens diante da morte, diante da fragilidade da vida, da dor de viver, sempre à beira do abismo da morte. Passei pela estante e dei de cara com A Divina Comédia. Abri a esmo e deparei com a passagem em que o rio Aqueronte fala: “Por mim se vai à cidadela ardente / por mim se vai à cidadela ardente / por mim se vai à sempiterna dor / por mim se vai à condenada gente”. Ao ler, me senti como o rio falante, levando o leitor à cidadela ardente, onde vivem esses personagens condenados.

Em Pagu: literatura e revolução, suas preocupações centram-se no romance Parque industrial, de Patrícia Galvão, considerado o primeiro romance proletário brasileiro e por muito tempo rejeitado pela crítica e historiografia literárias. O que a fez pesquisá-lo? Qual a maior contribuição de Pagu ao romance brasileiro moderno?

A rejeição da crítica ao primeiro romance da Pagu foi o que despertou meu interesse por esse livro inicialmente. Meu espírito um tanto rebelde me leva a acreditar que sempre que uma obra é rejeitada com tanto empenho pelo status quo, que incomoda tanto o cânone, deve conter algum grande valor.Foi na busca deste valor que comecei a ler e a estudar Parque industrial”. De fato, durante minha investigação, fui reconhecendo mais e mais as qualidades tanto do romance, quanto nos demais escritos da Patrícia Galvão. Mais que uma romancista, Pagu foi uma pensadora, uma investigadora do momento histórico e estético que viveu. E não só isso, era uma questionadora, uma instigadora, uma inquieta. Não aceitava a acomodação em nenhuma hipótese. Via o artista necessariamente como um desbravador de novos mundos, um semeador do futuro, um ampliador de pensamentos e visões de mundo. Acredito que Pagu ainda anda muito esquecida. E quando lembrada, é cultuada apenas como personalidade exótica. A musa de Oswald de Andrade. Mas Pagu é bem mais. Se sua obra fosse encarada com mais seriedade, poderia contribuir muito mais para os escritores de hoje. Seus textos poderiam dar uma bela sacudida na poeira da literatura da atualidade.

Que autores exerceram maior influência em sua produção ficcional, assim como na formação de seu pensamento crítico?

Quando comecei a escrever, me sentia um pouco incomodada com a obsessão que eu tinha pela literatura da Clarice Lispector. Só me tranqüilizei quando entendi que o artista não se constrói do nada. Sempre começa na sombra de um artista preferido. A literatura da Clarice é a que mais me influenciou por muito tempo. Me fascinava ler textos que expressavam tão bem a dificuldade da literatura conseguir expressar a vida. A coisa, como ela dizia. A melhor arte é a que expressa a angústia, que é a do artista, mas que é de todo ser humano. Mas, claro que outros autores me encantaram, tornaram-se meus ídolos e fizeram parte da minha formação como escritora: Kafka, Guimarães Rosa, Graciliano, Drummond, James Joyce, García Marquez, Virgínia Woolf… Nossa! São tantos!

Do livro para a televisão. Como seu deu a passagem? Foi fácil ou exigiu mudanças radicais?

O verbo do escritor é escrever. Eu sou escritora. Adoro escrever. Para alguns gêneros eu me preparei mais, tenho uma bagagem, técnica, exercício, traquejo. Deve ser como para um nadador a diferença entre nadar na piscina, no mar ou na lagoa. A água e os princípios da natação são os mesmos. O que muda é a técnica que você vai usar em cada contexto, em cada ambiente. Para mim, foi tranqüila a passagem do livro para a televisão, porque tive um bom treinamento técnico na oficina de dramaturgia da TV Globo. Eu já era uma noveleira. Adorava ver novelas, desde criança. Tinha repertório. Na televisão pude exercitar o meu lado de contadora de história mais livremente. Sou muito emocional. E essa veia da emoção ficou mais livre. Me dei muito bem com esse veículo desde o começo. Entretanto, a Thelma autora de contos ou poemas é completamente distinta da Thelma novelista. Aciono um botão diferente da mente e da sensibilidade para cada veículo da escrita. Mas não faço isso com grande esforço não. É bem natural.

A obrigação de escrever um capítulo de novela por dia parece algo extremamente exaustivo. E as pressões das pesquisas de mercado também podem comprometer a qualidade do que se escreve. Como lidar com isso?

Ser autor de novela não é trabalho pra gente preguiçosa (rs). Exige muito esforço físico e mental. É um esforço intensivo e extensivo. Mas eu amo demais o meu trabalho. Por isso, nunca me sinto exausta, desanimada. O cansaço é compensado pela alegria com que eu escrevo. Jamais sofri pressões de pesquisas de mercado! Graças aos céus! Nunca recebi imposições vindas de quem quer que fosse. Tudo o que escrevo vem da minha cabeça (e da cabeça da minha parceira de trabalho). Quanto à audiência, esta é uma grande preocupação minha, antes de ser preocupação da empresa onde trabalho. Quero que minha obra seja vista e apreciada. Escrevo para o telespectador. Se algo que eu escrevo não agradar a ele, quero saber por quê. E se conseguir, vou mudar sim! Sou uma sortuda, porque nunca precisei fazer grandes mudanças, devido à rejeição do público. Mas se precisar, pode saber que farei! Claro que vou fazer de tudo para não comprometer a qualidade da obra. Quero fazer meu biscoito fino para as massas consumirem.

A que atribui o sucesso e os prêmios recebidos pela telenovela Cordel Encantado, escrita em parceria com Duda Rachid. O que destaca de positivo e negativo na escritura a quatro mãos?

É impossível encontrar uma resposta única para o sucesso da novela. Os prêmios, a aceitação pelo público e crítica que Cordel obteve deve-se a um conjunto de acertos de profissionais talentosos de todas as áreas: texto, direção, elenco, fotografia, cenário, figurino, luz, caracterização, etc. Nossa história, acho que ela calou fundo no coração do público brasileiro ao tocar em nosso imaginário de maneira tão singela e verdadeira. Duca e eu escrevemos com o coração. O amor que sentimos pela literatura universal e pelo povo nordestino nos moveu numa direção cheia de verdade e boa intuição. Quanto à escrita a quatro mãos, ela tem mais características positivas que negativas.Quando dois criadores que têm visões de mundo parecidas conseguem amansar seus egos e se harmonizar, a fim de criar em dupla, é uma maravilha. A longa viagem da novela fica mais tranqüila e o resultado é mais intenso e criativo.

Acredita que as modernas tecnologias facilitem o acesso das pessoas à literatura e que o livro, em sua forma tradicional, possa, de fato, ser engolido por elas?

Não sei. Acredito que a narrativa, a literatura, nunca vai acabar. É isso que importa. De que jeito ela vai ser consumida não tem relevância. A preocupação de quem escreve e lê é escrever e ler, né?

Nem sempre as relações entre autores e editores atingem mútua satisfação no que se refere às expectativas e objetivos, haja vista a incipiência de nosso mercado editorial. O que fazer para que alcancemos os patamares editoriais europeus ou norte-americanos num futuro não muito distante?

Não faço a menor ideia de como responder a esta pergunta. Para começar, acho que o primeiro problema a se resolver no Brasil é a falta de leitores. Um mercado editorial forte depende, antes de tudo, de consumidores de livros. A verdade é que no Brasil se lê muito pouco. Faltam campanhas de incentivo. Em relação ao mercado editorial propriamente dito, não tenho conhecimento suficiente dos problemas para pensar em como resolvê-los. Até hoje só tive livros publicados por editores pequenos, com grande dificuldade para divulgar e colocar seus livros nas livrarias.

O enfrentamento das questões educacionais em nosso país há muito se faz necessário e tem sido historicamente retardado. Os meios de comunicação de massa, como a televisão, têm algum papel nesse sentido ou devem funcionar como meros veículos de entretenimento?

A televisão já ocupa um espaço grande em relação à informação e educação em nosso país. E acredito que o entretenimento pode sim vir acompanhado de produtos artísticos, de elementos que contribuam para a educação e cultura.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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