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Rojões

O namoro acontecia  na enorme sala que dava para a varanda da casa, sempre sob o olhar atento ora do pai, ora da mãe. Quando ambos não podiam manter a rígida vigília por alguns minutos, essa tarefa cabia à irmã menor da moça, de 13 anos, sob a recomendação de não desviar os olhos do casal sob qualquer pretexto. Era abril de 1972 e na sala havia um moderno aparelho de tv Telefunken de 23 polegadas em cores, privilégio de pouquíssimas residências, e nele o casal de namorados depositava a esperança de pelo menos uma pequena distração da menina, oportunidade para um furtivo beijo.

Eis que no exato momento em que a menina, atraída pelo comercial de uma boneca,  pousou por mais tempo os olhos na tv, antes que se consumasse o esperado beijo, surge na porta a austera figura do pai para trocar o turno da guarda e reinstala com o seu grave olhar o “muro de Berlim” entre o casal.

O rapaz, estudante de química, filho de um grande amigo do pai da moça, frequentava a casa há um mês, desde que a pedira em namoro. Naquele dia  ele não se sentia muito bem, com umas pequenas inquietações intestinais, uns desassossegos que se avolumavam a cada minuto, provavelmente decorrentes da elevada ingestão matinal de queijos, pão, leite, croissant e do almoço rico em gorduras saturadas, repolho, ovo e batata doce.

Há alguns minutos um flato já pretendia sair, aprisionado a duras penas  pelo moço, logo seguido de outros, todos solidários e calorosos amigos que se apoiavam na desesperada tentativa de liberdade.

Até que, depois de todos os esforços possíveis e não tendo mais como segurar,  o namorado decidiu ficar bem posicionado, pressionando uma e outra nádega no assento de tecido almofadado do sofá e ir soltando aos pouquinhos, a granel, os silenciosos indivíduos, na esperança de que eles não escapassem  pelos cantos ou morressem diluídos no tecido. Como àquela época os casais de namorados sob vigília pouco se falavam, apesar de pai e filha estranharem aquelas pequenas oscilações corporais do rapaz, pensando tratar-se de fruto da sua timidez, nada perguntavam.

“E se eu acender um charuto? Risco o fósforo e liberto aos poucos estes intrometidos. Não, o cheiro da pólvora de um palito é fraco, quase ínfimo, para misturar-se, evolar no ambiente e ludibriar o olfato. E também seria indelicado fumar sentado aqui na sala”.  Desiste da ideia, enquanto chega o irmão adolescente da moça, carregando uma caixa que deposita a um canto.

— Boa tarde a todos – e olhando para o pai. — Pai, posso colocar a tv no canal 100? Está sendo transmitido o jogo entre Flamengo e Vasco da Gama. Comprei duas dúzias de rojões para soltarmos na varanda em comemoração pela vitória.

Flamenguista roxo como o filho, o  pai levanta e sintoniza o canal, em busca da melhor imagem da disputa que já havia começado há alguns minutos.

O pobre namorado, que há muito colecionava entre o corpo e a almofada seus silenciosos rojões particulares, viu ali naqueles fogos o artifício ideal para safar-se daquela incômoda situação. Aqueles tubos seriam a sua salvação. Agora, ele só precisava continuar aprisionando seus gases e torcer para que o Flamengo marcasse um ou mais gols, e que isto ocorresse o mais rápido possível. E no momento propício – quando os foguetes fossem acesos e disparados – o estudante de química se responsabilizaria pela mistura das fragrâncias. De forma que, nunca tendo se interessado por futebol, a partir dali tornou-se – arrebatado pelas circunstâncias –  mais um fanático torcedor do rubro-negro carioca.

— E, por Deus, que o Vasco não cometa a tragédia de marcar o primeiro gol! – sussurra.

— O que disse? –  pergunta a namorada.

— Não é nada. Estava aqui pensando alto com meus botões…

Atormentado pelas flatulências, o namorado torcia e contorcia-se, movimentando-se minimamente, temeroso de deixar escapar algum ruído seguido de outro elemento que, encontrando-se livremente com o ar ambiente,  fatalmente exalaria o seu característico odor de ovo podre, denunciando o seu algoz.

 E rezava para todos os santos implorando que o Flamengo fizesse logo o gol. Como o rubro-negro estava constantemente no ataque, esperando ansiosamente pela bola nos fundos da rede, o irmão da moça já havia tirado da caixa alguns rojões, deixando-os junto com os fósforos na saída para a varanda, onde aguardava de pé, com os  olhos grudados na tv.

Quando o Flamengo finalmente faz o gol, pai e filho gritam, abraçam-se e correm para a varanda, empunhando dois rojões e ateando fogo aos pavios. Erguem os braços, lançam aqueles e outros foguetes  e o pai já nem se lembra de vigiar os namorados, que neste breve momento de júbilo dos torcedores poderiam abraçar-se e beijar-se à vontade.

Mas, qual! O rapaz, vendo agora a chance de dar cabo daquela torturante batalha ventral, nem dá atenção à moça que não entende a sua recusa aos lábios que ela tão avidamente lhe oferece. Continua olhando para a varanda, para o pai da moça, o filho e os canudos de papelão, e exatamente no momento em que espocam os rojões, ele levanta-se de chofre, levitando também todas as essências acorrentadas, e lá foram elas, em feliz alforria somar-se à névoa e aos odores de enxofre dos canhões de papel que inundavam a sala, dando glórias ao Flamengo.

Quanto mais foguetes eram lançados, no azul já recheado de estrelas eclodiam numa festa de cores o vermelho do  lítio, o amarelo do sódio, o violeta do potássio, o verde do bário, as faíscas douradas do ferro…

— Nossa! Estes rojões são especiais, os melhores que já comprei até hoje. Sintam o aroma… – diz o filho. O pai concorda e também o namorado aprendiz de química que, alvo do olhar de censura da desconsolada moça, atesta:

— Realmente, são fogos diferenciados, com pólvora boa e em grande quantidade, vários elementos adicionados à mistura explosiva, estouro e aroma  intensos e grande propulsão…

Neste comentário, aqui resumido por falta de espaço no papel, talvez por tratar-se de assunto do seu inteiro domínio, o rapaz falara mais do que em todo aquele dia de namoro, enquanto a namorada, imaginando que todo o ar que entrava pela varanda fluía em profusão exatamente na direção do sofá, dado o elevado e insuportável cheiro de enxofre naquele espaço,  tapava  com dois dedos o narizinho, delicado órgão acostumado a rojões bem mais amenos.

E o namorado, sentindo que a sua revolução interna persistia, aproveitou o ar carregado e o barulho dos fogos para soltar  ainda duas ou três lufadas quentes e tratou de despedir-se logo, com a desculpa de um compromisso urgente. E aqui não procede dizer que ele saiu sem deixar rastro.

Cinco meses depois o namoro já havia acabado, porque além da flatulência que a partir daquele episódio tornara-se companheira inseparável do rapaz, apresentando-se às vezes escandalosa e despudoradamente onde quer que ele estivesse, a moça descobrira nele, aos poucos, uma infinidade de outros podres.

E nunca mais, nem quando em setembro daquele ano o Flamengo sagrara-se campeão carioca vencendo o Fluminense no Maracanã e pai e filho soltaram o triplo de rojões, enfumaçando toda a casa, nem em outras ocasiões em que se usaram estes artefatos pirotécnicos, foram encontrados nas redondezas fogos de artifício com superior fragrância e singular qualidade.
 
*Conto do livro Leva-me Contigo, a Senhora S & Outras Histórias (Editora Penalux – 2016)
Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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