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Rita Moreira: uma voz inquieta

Ainda muito jovem, a paulistana Rita Moreira foi letrista e parceira de Paulinho Nogueira. Moça na chuva e Historinha, são algumas de suas composições mais conhecidas.

Publicou quatro livros de poesia: Maria morta em mim (1962), A hora do maior amor (1965), Perscrutando o papaia ( 1999)e Coração de ontem (2015) que despertaram elogios de Menotti Del Picchia, Paulo Bomfim e Renata Pallottini, dentre outros nomes consagrados de nossas letras.

Por vários anos foi redatora nas editoras Abril, Rio Gráfica, Globo , Time Life e Larousse. Nesta última, foi editora de etimologia da Enciclopédia Larousse.

Em Nova York, onde se formou videodocumentarista pela New School for Social Research, foi correspondente do semanário Opinião e escreveu artigos para as revistas Realidade, Nova e Psicologia Atual.

Como videodocumentarista, recebeu importantes prêmios nacionais e internacionais.

Como e quando se deu a descoberta da literatura?

Ah, desde muito pequena. Meus pais liam muito, minhas avós liam muito, nasci rodeada de livros. Minhas avós liam livros franceses e ingleses, principalmente. Meus pais gostavam dos autores nacionais. Desde pequena li muito Erico Veríssimo, Monteiro Lobato, acho que tudo deles. A coleção Madame Deli, que tinha histórias de mistérios. Nunca esqueci um título: O Mistério do Castelo de Morande. Como adorei esse livro! Tínhamos também, aliás, tenho até hoje, os Irmãos Grimm, Andersen e O Juca e Chico, traduzido por Bilac. Lia, igualmente, muita poesia, pois meus pais tinham amigos poetas. Eles eram muito amigos de Guilherme de Almeida, de quem hoje não gosto mais e até vendi os livros autografados, quando meu pai morreu e de Lupe Cotrim Garaude, de quem eu gostava bastante. O Paulo Vanzolini era outro grande amigo de meu pai. Enfim, eu tive sorte, sei lá, destino, de ser filha de artista. Meu pai, Eduardo Moreira, era Procurador do Estado, mas era, principalmente, artista. Tocava qualquer instrumento, teve um conjunto na juventude, foi diretor de musicais da TV Record, com Inezita Barroso, Maysa, Conjunto Farroupilha. Minha mãe, Marília Moreira, era também grande leitora e talvez uma das mulheres mais inteligentes e vivas que conheci. Escrevia e apresentava programas no rádio e na televisão. Foi ativista política. Portanto, venho de uma família muito criativa e divertida.

Quais as maiores influências em sua formação intelectual?

Li tanta coisa e como já estou meio velha, já nem sei. A certa altura, na adolescência, eu gostava muito de psicologia, li Karen Horne, Eric Fromm, depois Jung. Tudo entremeado, sempre, de livros de mistério e suspense, tipo Ellery Queen Magazine. Ainda jovem,li Dostoievski, Tolstoi e tantos outros.Mas eu já me desfiz (dei, troquei em sebo, vendi) de tantas bibliotecas que agora misturo tudo em minha cabeça. Dos americanos, eu sempre gostei muito. John Steinbeck, Baldwin, Salinger, mas realmente foram tantos que não dá para fazer uma lista. Claro que, um pouco mais tarde, mergulhei em Clarice Lispector. E mais tarde ainda em Virgínia Woolf, Katherine Mansfield (nessas, de vez em quando, eu volto). Na poesia, havia os Paul Valery meio melosos de meu pai, Fernando Pessoa, nem precisa dizer, desde a adolescência e para sempre. Uma jovem amiga me lembrou que eu havia dito que se fosse para uma ilha e só pudesse levar um livro, levaria Fernando Pessoa. Mas acho que essa seria a opção de muitos leitores de português. Eu amava Manuel Bandeira. E até hoje, acima de todos, Cecília Meireles. Nunca fui muito João Cabral, embora o lesse. Achava coisa muito engajada, me comovia menos, como aquele russo que se matou, o Maiakovski .Eu também lia umas coisas árabes e Camões, mas só os sonetos de amor, pois o resto era um tanto histórico demais para mim, talvez porque não tenha tido uma educação formal, já que só fiz o ginasial e não tolerava escola. Procurei ter aulas particulares das coisas que gostava. Nas aulas de redação fui aluna da grande Claudia Lemos e cedo fui aprender inglês e francês, velhas tradições familiares. Depois, nos Estados Unidos, fiquei mais firme no inglês e podem me xingar, mas leio hoje em dia sobretudo escritores que escrevem em inglês. Já li absolutamente tudo de P.D. James, grande criadora de personagens, grande visão psicológica, quase tudo de Donna Leon. Amo, adoro, venero Edith Wharton. Descobri a maravilhosa Carson McCullers. Descobri , anos mais tarde, Faulkner. Li – e ainda leio hoje – Henry James e James Joyce. E vai ficar faltando um monte de gente. Em poesia, tive o privilégio de ser apresentada à obra rara de Antonio Botto e curtia algumas poesias do Vinicius. Ainda entre os autores de língua inglesa, destaco Oscar Wilde. Gosto do Drummond e da candura deslumbrante do Quintana. O que mais me impressionou nos últimos tempos foi a Carson McCullers. Absorvidamente, li o magnífico Infiel, da Ayaan Hirsi Ali . Tentei várias vezes, mas nunca consegui ler Dante, nem Proust, nem Guimarães Rosa e sei que dizer isso causa espécie. Pois que cause! Dante, pelo menos, pretendo ainda insistir. Alguém disse que somos impressionados mais pelo que lemos na juventude e é verdade. Nossa, como me impressionaram Knut Hamsun, Somerset Maugham, Guy de Maupassant! Enfim, aqueles livros que todos nós jovens líamos no passado.

De seu primeiro livro, Maria morta em mim , a seu mais recente trabalho, Coração de ontem, considera que houve mudanças em sua dicção poética?

Espero que sim. Em Maria morta em mim há poesias de quando eu tinha entre 15 e 18 anos, mais ou menos. Creio ter melhorado, no sentido da escrita. Além disso, meu trabalho de anos e anos como redatora, depois como editora, me deixaram mais íntima das palavras. Mas sua próxima pergunta vai continuar o que eu ia explicar.

A que se deveu o afastamento da poesia por mais de três décadas, entre a publicação de seus dois primeiros livros e o terceiro?

Acho que posso dizer que sou uma artista. Pelo menos, minha psiquiatra holandesa garantiu que sou. Quero dizer, uma coisa mais geral. Não sou metódica, nunca tive o escrever como um trabalho. A não ser, é claro, como profissional, escrevendo matérias para revistas, reportagens, artigos e traduções, pois traduzi vários livros para várias editoras e os melhores foram os de culinária. Eu escrevo quando tenho inspiração. Sei que tem gente que fala em suor, construção, trabalho, mas eu sou quase uma psicografista de mim mesma. Olho o que escrevi tempos atrás e nem acredito. Fui eu? Não se trata de uma sempre ótima poesia. Algumas deram certo. Algumas são divertidas, há espírito e música, mas nem tudo é bom, talvez, tenham razão, não basta inspiração. Mas há vezes, na minha poesia, em que a inspiração veio absolutamente perfeita e pronta. Sim, como os verdadeiros artistas, escrevo porque preciso. Só que nem sempre preciso. Os ventos me levam à vontade.

No prefácio de Perscrutando o papaia, a escritora Marília Pacheco Fiorillo aponta que a maturidade trouxe leveza e humor à sua poesia. É por aí mesmo?

Totalmente. Porque minha vida ficou mais leve e divertida com o passar do tempo. A idade me fez bem. A juventude me atormentava mais. Envelhecer, para mim, foi e tem sido, muito bom.

Pode fazer um balanço de suas incursões por nossa música popular?

As coisas que compus? Por um bom tempo e com muito carinho rolando, fui parceira do violonista Paulinho Nogueira. Fizemos Moça Triste da Chuva, que tocou no rádio um bom tempo e foi sucesso com o Conjunto Farroupilha. Gravada pelo Dick Farney, Alaíde Costa e Agnaldo Rayol. Ou foi Historinha que eles gravaram? Misturo um pouco. Fiz uma música com a Tuca, falecida. Tão divertidas que nós éramos! Tive a felicidade de conviver com Bethania e Caetano, quando chegaram a São Paulo, mas eles não devem se lembrar de mim, depois de tanto sucesso. Me recordo de uma madrugada na casa de meus pais, em Santo Amaro, minha mãe de camisola descendo as escadas, absolutamente encantada, dizendo: “mas de quem é essa voz maravilhosa?”. Era Bethania. Nos últimos anos de vida, minha mãe teve Alzheimer e seus momentos mais felizes eram assistindo os dvds de Maria Bethania. Ao assistí-los, ela não admitia que ninguém conversasse e repetia, como antigamente:”mas que voz maravilhosa, maravilhosa!” E Bethania é mesmo maravilhosa, em todos os aspectos.

Em que momento a aproximação com o cinema ?

Eu nunca fiz cinema película, apenas vídeo. Hoje se faz vídeo e vira filme. Mas tudo começou quando assisti a um filme, película, um documentário feito por uma amiga querida, morta recentemente, Norma Bahia Pontes, sobre os antilhenses (Les Antillais) que viviam em Paris. Eu nunca havia assistido a nada real. Fiquei impressionadíssima. Foi minha primeira visão clara do racismo e de uma maneira absolutamente diferente de se mostrar a vida real. Acho que já havia visto os Rossellinis, De Siccas e outros italianos. Mas aquele era real! E era muito, muito bom. Larguei meu trabalho na editora Abril. Norma largou o dela, como diretora de filmes da Nestlé para a McCann Erickson e lá fomos nós, para Nova York, aprender o vídeo que começava. Ideia dela. Sou influenciável, flexível. Fomos, então, as pioneiras em vídeo portátil. Frequentamos the very first course de vídeo que surgiu, com a absolutamente primeira câmera portátil fabricada pela Sony, na New School for Social Research. Norma tinha estudado no IDHEC, de Paris, com Jean Roux. Ela era mesmo uma grande artista. Além daquele filme, havia feito outros, sobre a Bahia. E tinha escrito um livro em parceria com Glauber Rocha. Eis que ela ganha uma bolsa Guggenheim, com o projeto que criamos, chamado Living in NYC series . Compramos, então, uma câmera e nosso vídeo de estudantes foi representar a escola, no primeiro festival de vídeo do mundo, em Tóquio. Enfim, não tínhamos muito dinheiro, mas vivíamos uma vida realmente deslumbrante, movimentada. Eram os anos 70 e morávamos em Nova York, onde tudo acontecia. Estávamos no meio do mundo e foi o melhor tempo de minha vida, fora as férias na fazenda em Ribeirão Preto, quando criança. Fizemos um monte de vídeos nessa série, com total liberdade. Distribuímos para umas cem universidades americanas, canadenses, francesas, alemãs. Enfim, havia um público paralelo, composto pelos cursos de Women’s Studies e English e havia também os inúmeros Caucus. Estávamos em pleno movimento das mulheres e dos gays. Aliás, os dois movimentos mais importantes do século XX. Fizemos um vídeo sobre a música de Yoko Ono e fomos lá mostrar para ela e o John, aqueles adoráveis, maravilhosos! Depois, quando acabou a ditadura e Montoro foi eleito em São Paulo, resolvi voltar ao Brasil. Norma foi para o Rio e segui carreira solo, fazendo vídeos e mais vídeos, metade para ganhar dinheiro, principalmente sob encomenda de políticos, e metade por conta própria, com assuntos que me interessavam. Fiz muitos vídeos, que foram exibidos em escolas e em canais de TV, como a Cultura e a Gazeta, em São Paulo. Vários deles ganharam prêmios importantes. Hoje, no entanto, não faço mais vídeos. Não acho que criar seja apenas compor, escrever, fazer coisas. Vivendo o dia a dia e resolvendo os problemas podemos criar sem parar, ainda que sem ganhar prêmios ou dinheiro. Hoje não preciso mais trabalhar para me sustentar. Mas aceitaria fazer alguma coisa que aparecesse, desde que gostasse. Ganhei dinheiro fazendo vídeos. Hoje, ou trabalho para alguém por um bom preço, ou faço por amor, totalmente de graça. A segunda opção geralmente me dá mais prazer. Felizmente, não tenho mais necessidades urgentes de sobrevivência. Me organizei , não fumo e não bebo, só muito ocasionalmente, até porque me faz mal. E, surpreendentemente, não virei a velhinha maconheira que pensei que fosse virar (risos).

O que destaca em sua premiada carreira como videomaker , a partir dos anos 70?

Bem, a descoberta e o tratamento de A Dama do Pacaembu, apesar da péssima qualidade técnica, pois eu só contava com uma câmera emprestada, que eu não sabia usar. Temporada de Caça, que ganhou uns 15 prêmios, apesar de pobre, totalmente em VHS, cujo tema, o assassinato de homossexuais, continua pertinente. Com minha experiência em edição de textos e as aulas em Nova York, virei uma boa editora. Não operadora de edição. Como no cinema, meus vídeos eram todos pré-editados, até os efeitos, tudo já estava preparado, em cartões, take por take, antes de entrarmos na ilha. Claro que o editor existia e criava, mas baseado no cartão. Fiz também muitas cartilhas no tempo da editora Abril. Era eu quem fazia os bonecos, dividindo as páginas, cenas, balões. Creio, então, que todas essas experiências se misturam,embora tenha feito câmera, entrevistas, etc, a minha alma é mais de editora. Aliás, no próprio modo como percebo e entendo a vida, pois vejo uma coisa aqui, outra em outro dia, em outro lugar, junto com uma informação vinda de lugar completamente diferente, monto as coisas e, de repente, meio Gestalt, eu saco o geral. Percebo o que está acontecendo. Às vezes é terrível. Às vezes maravilhoso. Acho que é porque existem as duas coisas no mundo, não? Ai, que platitude!

Acredita que a arte possa exercer o papel de principal transformadora de valores sociais? Em nosso século ainda há espaço para movimentos artísticos de cunho revolucionário?

A arte é a coisa mais importante, significativa, a melhor coisa que existe, a primeira, sem igual. Não sei se ela é transformadora social, talvez seja mais espelho, infelizmente. Mas, sem dúvida, John Lennon afetou o governo americano. Nina Simone ajudou na luta contra o racismo. Entretanto, ao mesmo tempo, Michelangelo e Da Vinci trabalhavam a soldo. Embora maravilhosas, as artes italianas não retratem assim tão bem, não transformem nada.Mas a arte precisa ter função? Não pode ser só o fruto de uma inspiração?Trazer sensações agradáveis ou profundas a quem as percebe? Meu favorito é Chopin. Será que ele é útil? Voltando à literatura, lembro que gostava muito de Cortázar. Que sensações inesperadas eu tinha ao lê-lo! Aquela coisas dos coelhos sendo vomitados, jamais esqueço. Porém, qual a utilidade desses livros maravilhosos? Sim, no caso da maravilhosa Ayaan Hirsi Ali, com seu Infiel, a literatura significou o conhecimento de outros mundos e com isso sua transformação, sua liberação.Então, é claro que a arte tem uma função. Ela transporta e pode ser tanto espiritualmente, apenas, como socialmente, na realidade das coisas do mundo. Não sei. Cada vez sei menos.

Perspectivas de novos projetos para o cinema, a música e a literatura?

Meu principal desejo, que agora se acentuou com a idade, é de fazer alguma coisa, não para criar e sim para ajudar. Ajudar o mundo de algum jeito, mesmo pequenina. Acho que muita coisa mudou, após meu período como aprendiz de zen budismo. Deus sumiu, meio como com Sartre (o dele desapareceu numa esquina) e tudo ficou diferente, dependendo de mim. Claro que amor a gente sempre quer e aceita feliz, em todas as suas variações. Já aplausos são enganadores, de nada servem. Não se dirigem a você. Quem é você? Quem sou eu? Comecei perguntando isso aos 11 anos, numa poesia que está em Maria Morta em Mim, e continuo até hoje.

Sobre oa autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo, professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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