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Luiz Carlos Moreira: o teatro como contraponto à cultura dominante

Formado em direção teatral pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), Luiz Carlos Moreira começou a fazer teatro ainda na infância, no interior de São Paulo. É fundador do grupo Engenho Teatral, que há mais de quatro décadas tem levado às periferias da capital paulista trabalhos que são contundentes reflexões aos modelos culturais dominantes.

Como se deu o início de sua trajetória no teatro?

Dos quatro aos onze anos, fiz teatro não religioso no centro espírita de uma cidadezinha do interior paulista. No colégio, final dos anos 1960, participei de um grupo e de um curso rápido de interpretação sobre Stanislavski, com Eugênio Kusnet, no Teatro de Arena de São Paulo. No início dos anos 1970, fui contratado como ator para algumas apresentações vendidas para escolas. Em seguida, me formei em direção pela Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, e acompanhei os grupos que se deslocaram para a periferia de São Paulo.

O sociólogo Marcelo Ridente afirma que nos anos 1960 e início dos 1970, nos meios artísticos intelectualizados, de esquerda, era central o problema da identidade nacional e política do povo brasileiro. Como era fazer teatro naquele período?

No final dos anos 50, começo dos anos 60, havia um projeto de independência nacional que pode ser resumido, esquematicamente, da seguinte forma: a urbanização e industrialização iria gerar um mercado interno e um crescimento econômico para modernizar o país. Essa modernização dependia e provocaria uma redenção do mundo rural, arcaico, atrasado, miserável: o campo se tornaria não só uma fonte da mercadoria alimento como engordaria o mercado consumidor interno. A afirmação nacional não passava por uma luta contra o capital, mas por uma afirmação do capital nacional frente ao capital estrangeiro – leia-se imperialismo norte-americano – e por uma redenção do campo, o que era sinônimo de reforma agrária e luta contra o latifúndio arcaico. O povo teria lugar nesse processo e nas decisões, uma espécie de etapa para uma futura revolução socialista. De certa forma, o governo do presidente João Goulart e suas Reformas de Base pareciam contemplar esse projeto nacional. O golpe civil-militar de 1964, implantando uma ditadura que duraria um quarto de século com articulação e apoio norte-americanos, sepultou essas ilusões. Mas completou a urbanização e industrialização do país e forçou uma integração nacional consumista onde a Rede Globo teria um papel fundamental. Pra isso, manteve a subordinação ao capital estrangeiro e sufocou qualquer veleidade de participação do chamado povo brasileiro na tomada de decisões. O conceito de independência foi substituído pelo conceito de interdependência e o papel das Forças Armadas deixou de ser a defesa das fronteiras nacionais frente ao inimigo externo para a defesa da ordem capitalista frente ao inimigo interno, os chamados subversivos, comunistas ou, no limite, a massa desordeira e descontrolada, em suma, o próprio povo brasileiro se ousasse discordar da ordem imposta. Afirmou-se a ideia de Segurança Nacional e a militarização da polícia. Contra as vozes discordantes do chamado povo brasileiro, o Estado militarizado criou, na marra, as condições para que os empresários nacionais se aliassem ao capital multinacional, assumindo, por vontade própria, um papel dependente.”

O texto acima integra Canção Indigesta, mais recente espetáculo do Engenho Teatral, grupo a que pertenço. Em consonância com essa história, basicamente no Teatro de Arena de São Paulo, nasceu a defesa de uma cultura nacional popular. Passou-se a defender a criação de uma dramaturgia nacional que colocasse o povo brasileiro no palco, a exigir da cena uma representação e uma prosódia fiel a si mesma. A partir daí e até os anos 1970, a realidade brasileira passou a ser fundamental para o teatro do Brasil. Numa cultura de esquerda, como diz a pergunta, o confronto com a ditadura, que teimava em esconder as contradições reais era inevitável. Registre-se, no entanto, alguns deslocamentos: 1. se, no início, e sem entrar no mérito do projeto, tratava-se da construção de uma nação com vistas a uma revolução socialista futura, a partir do golpe de 1964 o fundamental passou, pouco a pouco, a ser a luta contra a ditadura, ou seja, a defesa por liberdades democráticas. Retrocesso?; 2.uma cena inicialmente centrada na ação dramática, no drama social, com pinceladas naturalistas (Eles Não Usam Black-Tie, do Guarnieri, é um exemplo clássico), passou a conviver, a partir de 1964, com espetáculos épicos, com a música, a narração, a fragmentação, a história e outros recursos de linguagem ocupando a cena para denunciar a ditadura, driblar a censura e exortar à luta derrotada, sem discutir essa derrota (Arena Conta Zumbi e Liberdade, Liberdade servem de exemplos); 3.no final dos anos 1960, com a implantação do AI-5 (dezembro de 1968), a repressão se intensifica com a caça sem limites à luta armada, a proibição de qualquer manifestação ou organização de resistência, a censura à imprensa, chegando à classe média, que fora mais ou menos poupada , até então. Surgem novos dramaturgos ( Zé Vicente, Leilah Assunção, Antonio Bivar) e personagens dramáticos enclausurados, desesperados, sem saída. No dizer de um crítico amigo, nunca o teatro brasileiro rastejou tanto; 4. nos anos 1970, com espetáculos metafóricos, alusões por tabela para driblar a censura, o teatro junta-se totalmente a uma frente ampla para denunciar as arbitrariedades da ditadura e exigir uma democracia burguesa (Ponto de Partida serve de exemplo; idem Um Grito Parado No Ar). A organização da produção, a falência do mercado teatral, a busca da subvenção do Estado, a tentativa de se levar o teatro ao trabalhador ausente na platéia (CPC, no início dos anos 1960 e grupos que se deslocam para a periferia de São Paulo, na primeira metade dos anos 1970) acompanham toda essa trajetória e não são menos importantes para se entender o período. Mas essas são outras histórias, fora da instituição teatral, e já fui longe demais.

Numa intenção estética ousada, o espetáculo Canção Indigesta assinala com agudeza a realidade que atualmente vivemos. Qual a resposta do público que o assiste?

Duas informações necessárias: grande parte do público do Engenho não frequenta o circuito teatral, não conhece teatro. Canção Indigesta não trabalha com fábulas, vai direto ao ponto, discutindo a mídia e o trabalho como formadores desse individuozinho egoísta, medíocre e com pretensões consumistas em que nos transformamos. Sem nhém-nhém-nhém e sem cair nas falsas questões que bombeiam os whatzapps, o espetáculo surpreende, provoca e agrada a gregos e troianos com sua questão central: pra onde nos leva esse trem louco e desgovernado que é o capitalismo?

Canção Indigesta nos presenteia com um texto potente e atuações viscerais. É possível manter-se atual e revolucionário, após quase meio século de trajetória?

O Engenho Teatral não se veste com os termos ‘político’, ‘popular’ ou ‘revolucionário’, pois são problemáticos. Também não busca uma poética definitiva. Faz experiências, a cada momento busca uma forma de compartilhar com o público uma maneira que se contraponha à cultura dominante de ver, sentir, pensar, viver e representar o mundo.

Sabemos que toda escolha implica tomar partido, mesmo quando se pretende uma posição neutra. Como você analisa a postura política dos grupos de teatro hoje?

Posso falar dos grupos paulistanos que conheço, mas não em nome deles. Nos últimos 20 anos, dezenas deles provocaram uma verdadeira primavera teatral em São Paulo. Mudaram a história do teatro brasileiro ao mexer na organização da produção, na obra, no público, na relação com o Estado, mas a academia, a mídia, a instituição teatro, os promotores e as instituições culturais não sabem disso e não querem saber. Sei que tal afirmação tem muitas limitações, mas destaco dois pontos diretamente ligados à pergunta: 1) apesar de assumirem coletivamente o controle da produção, dispensando o patrão numa sociedade capitalista, os grupos não entenderam o sentido e as necessidades que isso impõe. É um limite que está sufocando e que pode sacrificar sua própria existência; 2) muitos ainda se rendem ao teatro enquanto instituição sagrada, arte que paira acima da vida concreta. Limitam-se à obra teatral e, de forma metafísica, às concepções hegemônicas que herdaram e que, contraditoriamente, superam muitas vezes no palco, mesmo sem saber que o fazem.

O Engenho Teatral, grupo do qual você foi um dos fundadores, existe há mais de quarenta anos. Como foi seu surgimento e que características primordiais ele carrega?

Nosso surgimento, em 1979, está com o rabo preso à resposta dada à segunda pergunta. Quanto às características, saliento o que respondi na quarta pergunta. E acrescento: o Engenho Teatral entende o teatro como um conjunto de relações, onde as partes se definem mutuamente. Que partes? A forma como se organiza a produção (grupo e não empresa), a obra, o público, o tempo, o espaço. E isso em processo histórico e não de forma estática. Fazer teatro implica mexer nessas relações e elas são, até hoje, as escolhas básicas do grupo: dispensar o patrão e não ter proprietário(s) do patrimônio acumulado; decidir coletivamente, ainda com divisões de funções e tarefas; buscar na periferia o público ausente no circuito tradicional, dando preferência a movimentos e organizações (mexer na plateia é mexer no palco; não se trata de formar público para o teatro, mas de formar o teatro para esse público); ter o controle de seu meio de produção – o teatro – e não depender de espaços e programações de terceiros (entre 1993 e 2004, o teatro percorreu as quatro regiões de São Paulo; a partir de 2004, fixou-se na Zona Leste da cidade, que tem mais de quatro milhões de habitantes); não cobrar ingressos (e não se trata de filantropia nem de altruísmo); dispensar a mídia tradicional e buscar ações e mecanismos próprios para dialogar com seu público;

Em Canção Indigesta há uma expressividade rítmica de corpo dos atores. Como foi esse preparo corporal?

Não houve preparo corporal específico. A bagagem é do elenco.

Você afirmou, em depoimento recente, que “a matéria prima do teatro é o homem, é o ser humano e suas relações.” Quem é esse homem e como se dá a sua relação com o teatro?

É o homem burguês, posto que de uma civilização burguesa, mas, destaque-se, em fim de carreira. A civilização, não o homem. Trata-se de um indivíduo que não se entende como classe, mas como livre empreendedor de si mesmo. Ou um indivíduo que não quer mais trabalhar, porque sabe, à sua maneira, que isso não dá futuro ou que não há nem haverá emprego para todos. Um indivíduo que não acredita nesse estado e na democracia representativa que só representa os interesses do capital. Um indivíduo desesperado, sem recursos para viver, sem saída, sem futuro e que implora por ordem e segurança, essa ordem e essa insegurança que estão aí, sem saber que pede mais do mesmo. Um indivíduo que quer mudanças. Uma classe trabalhadora fragmentada, precarizada, individualizada, deslocada (do Brasil para a China, por exemplo), sem chão, toyotizada como preposto do patrão. Uma classe trabalhadora que não se reconhece como tal, que age como objeto tentando não perder sua posição e não como sujeito de sua história. Um homem atônito frente a um desenvolvimento tecnológico alucinante que destrói o estabelecido numa rapidez nunca vista, incluindo aí o capital – é a cobra comendo o próprio rabo – que, cada vez mais, consegue explorar menos a mão de obra disponível para se reproduzir, diminuindo o mercado consumidor e destruindo o planeta, colocando em risco a existência do mamífero humano, fato inédito. Um homem bombardeado a entender seu mundo através de fake news, deepfakes, lixo da indústria cultural, etc. Enfim, devolvo parte da pergunta com outra: que teatro fazer para esse homem que somos, nessas circunstâncias? É o que os perdidos seres humanos do Engenho se metem à besta de tentar responder na prática.

O Engenho Teatral tem uma sede. Como foi conquistá-la e como tem sido mantê-la, em tempos tão opressores para a arte?

Pra quem não conhece, o Engenho Teatral é um teatro com 200 lugares, palco em forma de arena de três faces, coxias, camarim, banheiros para público, elenco e funcionários, oficina de adereços, cabine técnica, salas de espera, sustenta-se sobre 14 arcos de ferro com o vão interno totalmente livre de colunas. Está equipado com som, luz e projeção. Embora o grupo surja em 1979, só em 1993 lançou o Engenho Teatral e mergulhou na periferia. Até hoje, obtivemos algum apoio financeiro público que cobriram, ao todo, cerca de dez anos, de forma intermitente e insuficiente. Os outros 16 anos foram na raça, todo mundo trabalhando de graça, pondo dinheiro do próprio bolso, vivendo de outras fontes ou paralisando as atividades em certos períodos. Fora a produção, a manutenção do teatro e os ensaios, em 2018, Canção Indigesta cumpriu temporada de cinco meses em 2019 e ninguém (mais de 20 profissionais) ganhou nada. O mesmo ocorreu com as apresentações de oito grupos durante dois meses, realizando gratuitamente a mostra anual do Engenho. Além da precariedade financeira, houve percalços burocráticos e perseguições do baixo clero estatal que se somam ao choque objetivo com o mundo do trabalho, totalmente contrário à organização coletiva e continuada. Eu sempre disse: o Engenho Teatral é anacrônico, pois sua existência depende de um movimento social e de suas organizações, o que se perdeu (a Teologia da Libertação e suas Comunidades Eclesiais de Base são do milênio passado; a CUT, o PT e o MST, estruturas saídas da luta contra a ditadura, são o que são). É, roubando o discurso de um crítico brasileiro, uma ideia fora do lugar. No início, batemos na porta do PT, da CUT, da UNE, da UMES, do estado. Finalmente, partimos para a construção do teatro com recursos de familiares e amigos. Tivemos e temos certa convivência com o MST e com pequenos agrupamentos e instituições (escolas, por exemplo).

O que tem significado a Cooperativa Paulista de Teatro para a classe teatral?

A Cooperativa surgiu em 1979 e participei de sua fundação para dar guarida jurídica aos grupos teatrais, que não existem legalmente. Mas, por força da lei, é uma cooperativa de indivíduos. E esses, com a pressão do precário e falido mercado de trabalho, passaram a usá-la para dar nota fiscal por serviços realizados em publicidade, por exemplo. Era uma forma legal de se submeter às imposições patronais, driblando direitos trabalhistas. Cresceu. Com a falência do neoliberalismo do período de governo de Fernando Henrique Cardoso, o início da conciliação lulista e a organização dos grupos teatrais, conseguimos alguma coisa parecida com política pública. Exemplo paradigmático até hoje é que, em 2002, aprovamos uma lei criando o Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo. São recursos públicos para projetos de trabalho continuado. Não se dirigem a fomentar o mercado ou a produção, subvencionam núcleos artísticos contínuos, que ocupam o lugar do estado como sujeitos de um programa público que todo governo é obrigado a bancar. A Cooperativa chegou ao auge e se tornou a entidade com maior representatividade política na área. Detalhe: o dinheiro não é da Cooperativa, mas de centenas de pequenos núcleos produtores e cerca de três mil artistas. A mudança na legislação, transformando o artista trabalhador em empresário de si mesmo provocou nova migração dos indivíduos, que abandonaram a nota fiscal da Cooperativa para ter documento próprio e mais vantajoso perante o fisco. A perseguição conservadora a qualquer política pública fechou os cofres governamentais, paralisando, momentaneamente, o Fomento ao Teatro. A Cooperativa cambaleia.

Sobre o autor da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é doutorando em Arte e Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

 

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