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Crónicas da vida real: o Acácio

Estima-se que em cada 100 pessoas 30 sofram, ou venham a sofrer, num ou noutro momento da vida, de problemas de saúde mental e que cerca de 12 tenham uma doença mental grave.
A depressão é a doença mental mais frequente, sendo uma causa importante de incapacidade.
Em cada 100 pessoas, aproximadamente, uma sofre de esquizofrenia.

Oh, é tolinho.

Lembro-me perfeitamente desta expressão utilizada por muita gente, ao se referirem a pessoas com problemas mentais, pessoas essas que vagueavam pelas ruas da terra, rejeitadas pela maioria da sociedade, utilizadas e usadas inúmeras vezes para servirem de bombo da festa, de fonte de divertimento onde uns quantos energúmenos se enchiam de barrigadas de riso, à pala do “tolinho.”

Todas as terras tinham um. E quando digo um, refiro-me a um ser humano, um de nós, que como se já não bastasse o infortúnio de sofrerem de uma doença mental que se expandia a cada dia, por falta de tratamento adequado, ou pior ainda, por uma forte dose de ignorância por parte da sociedade que rodeava estas pessoas, eram muitas vezes vítimas de uns quantos “finos,” espertalhões, à sua volta, que não eram tão espertalhões assim, para pelo menos entenderem que afinal o tolinho, não era tolinho nenhum, mas sim uma pessoa com problemas mentais e psicológicos, doença a que qualquer um de nós está sujeito numa qualquer altura da nossa vida.

Nunca gostei da expressão, “oh, é tolinho” pelo que de desprezo era proferida em relação a quem sofria de uma doença que se manifesta a partir de um dos mais complexos órgãos do nosso corpo.

Não há um estereótipo em relação à maneira em como a doença se manifesta nas pessoas, pelo simples facto de que não somos todos iguais e mesmo que as doenças sejam similares, não se manifestam da mesma maneira em determinado tipo de pessoas, nem essas pessoas reagem da mesma maneira ao tipo de doença.

Algumas dessas pessoas que ao longo da vida fui conhecendo, e conhecidas na terra como tolinhos, eram pessoas com problemas mentais e, ou psicológicos, diferenciando-se entre si pelas causas antecedentes que de maneira progressiva por vezes, os havia levado ao estado de saúde mental a que haviam chegado. Lembro-me por exemplo de um individuo, proveniente de famílias abastadas e de bom nome na região, que tinha tanto de louco como de inteligente. Atribuía-se à inteligência os estudos universitários que tinha, com um excelente aproveitamento, e também as boas maneiras e um certo toque de classe na sua maneira de falar, de vestir, e na inteligência que se notava nas “loucas” conversas que desenrolava. À loucura atribuía-se o excesso de estudo que, afirmava-se, lhe tinha virado o cérebro do avesso.

Depois havia um ou outro menos afortunado, sem apoio familiar, sem cuidados médicos relacionados com o problema específico da sua saúde mental, a deambular ao abandono pelas ruas e lugares da região, à mercê dos que muito se divertiam à pala do “tolinho” da terra.

E depois havia o Acácio.

Chamo-lhe Acácio, como lhe poderia chamar António, ou Fernando, ou Mário, Diogo, Raul, Anacleto, porque afinal de contas de poeta e de louco todos temos um pouco.

Ficamos, portanto, pelo nome Acácio, protegendo a sua identidade ao multiplicar o nome por dezenas, centenas de Acácios…

Acácio está algures entre o individuo proveniente de famílias abastadas e de bom nome na região, e o menos afortunado, sem apoio familiar e cuidados médicos específicos, relacionados com a sua saúde mental. Ou seja, o Acácio tinha família. Pai, mãe. Gente humilde, gente boa, com muito pouca instrução escolar, que fez o melhor que pode para educar o filho que, “Olhe, é muito trabalhador sabe…? Mas é levezinho da cabeça.” E isto palavras da mãe que, coitada, conformada ao completo insucesso escolar do filho, às suas constantes crises psicológicas, à sua falta de atenção e capacidade para resolver simples tarefas do dia a dia, se conformou desde muito cedo que, dê-se-lhe Deus saúde para ela olhar por ele até aos fins dos seus dias, e do mal o menos.

Acácio era apesar de tudo independente. Ou seja, trabalhava, comia e bebia, não se relacionava com amigos, apenas com os colegas de trabalho que a maior parte das vezes, ou tiravam proveito das suas capacidades limitadas em relação a certos trabalhos, ou durante esses mesmos trabalhos aproveitavam para gozar com ele, para se divertirem à sua pala.

Acácio trabalhava na construção civil, “Sou trolha, e um bô trolha,” afirmava muitas vezes, mesmo sem lhe perguntarem. “Bô trolha? Cabrão que nem um traço de massa em condições sabes fazer.”

Mas era ele que a maioria das vezes o fazia, e era ele que transportava os baldes carregados de massa para os outros trolhas fazerem o seu trabalho entre pausas para o cigarro e a cerveja.

O Acácio tinha também algumas manias das quais não abdicava. Falo de acontecimentos com mais de quarenta anos. Nessa altura nem sequer se sonhava com o euro. Imperava no nosso país o escudo. Acácio não aceitava outra forma de pagamento que não fosse feita em notas de vinte escudos. Um dia o meu pai, que tinha que lhe fazer um pagamento de três mil escudos, entregou-lhe três notas de mil escudos cada.

“Ó San-Tónio, tem que me pagar com notas de vinte mil-réis”

“Notas de vinte mil-réis não tenho que chegue”

“Ai isso eu num sei…só arrecebo com notas de vinte mil-réis…”

E bem que se podia ficar ali uma vida inteira que o Acácio não mudava nem de discurso nem de opinião. Percebendo isso o meu pai lá se desfazia em trabalhos para arranjar as cento e cinquenta notas de vinte escudos para perfazer os três mil escudos.

Toda a gente tinha uma teoria diferente acerca desta mania do Acácio uma vez que ele não explicava a razão da sua exigência. Queria o pagamento em notas de vinte mil-réis (vinte escudos) e o resto não tinha sequer conversa. Uns afirmavam que tinha uma predileção especial pelo S. António, que era o santo que figurava num dos lados das notas de vinte escudos, depois os menos pacientes, diziam que era louco, o que me parecia uma expressão menos rude e menos desprezível do que tolinho, pelo menos mais poética, e nós, a família Magalhães, baseávamo-nos na nossa teoria do volume. Apesar de tudo o Acácio era um trabalhador árduo, não só porque lhe impingiam os trabalhos mais árduos, mas também porque os fazia sem contestar, sem mau feitio, com uma simplicidade que só os humildes são capazes de possuir. Tira-se vantagem disso, infelizmente.

Por isso, porque trabalhava arduamente, não lhe parecia justo que o seu pagamento fosse feito com apenas três notas. Agora, cento e cinquenta…isso já é outra música. E ele queria lá saber que o valor era o mesmo. Os olhos também comem…

Além das suas manias, como qualquer outra pessoa, o Acácio tinha os seus dias melhores e os seus dias piores. Normalmente os seus dias melhores acabavam por ser os dias piores de quem o rodeava.

Num desses dias, enquanto alguns colegas seus de trabalho se entretinham num jogo de cartas, na tasca do meu pai, aproveitando a hora de almoço, o Acácio saiu-se com uma ladainha que parecia não ter fim. Como ninguém sabia muito bem a que propósito vinha a conversa, cedo o Acácio começou a aborrecer os homens da jogatina. Quase que lhe foi implorado que se calasse, que desse um minutinho de sossego. Mas quanto mais se lhe implorava pelo sossego mais ele argumentava, embora ninguém soubesse muito bem ao que se referia. Um dos jogadores das cartas, daqueles que eram capazes de fumar um cigarro com engenho e arte, daqueles que quase fazem uma pirueta com o cigarro na boca, sem lhe tocarem com as mãos, apenas uma habilidade de lábios e a ponta da língua, dando-lhe voltas na boca até que o cigarro se extinga, ainda rosnou entre dentes, “Tás aqui tás-me a levar um cachaço,” ameaça que não funcionava pois o Acácio continuava o seu zunzum, ora gesticulando, ora rindo em pequenas gargalhadas, mas sempre sem se calar.

O meu pai sabia que em pessoas como o Acácio quanto mais as contrariar mais se obtém o oposto do que se pretende. Por isso fez-lhe uma proposta.

“Se estiveres calado durante cinco minutos, levas para casa um dos burros que estão lá fora”

Para se certificar a que burros o meu pai se referia, o Acácio foi até à porta e espreitou para a rua. Deve ter pensado que os únicos burros ali no momento, estavam a jogar às cartas. Mas deparou-se com os burros do moleiro, que nesse dia viera entregar uma encomenda de farinha à loja dos meus pais.

“Ó San-Tónio, dá-me mesmo um burro…!?”

“Dou, tens é que estar calado durante cinco minutos. Nem uma palavra.”

Entusiasmado o Acácio aceitou o desafio.

A paz voltava, mas nem por isso os jogadores das cartas se concentravam mais no jogo uma vez que estavam mais interessados no resultado do desafio. De vez em quando desviavam os olhos por cima do baralho, para olharem o Acácio que deve ter tido os piores cinco minutos da sua vida. Percebia-se pelos constantes suspiros profundos que deixava escapar constantemente, a agitação do corpo, na cadeira onde se sentara, e até numas pequenas gotas de suor que se lhe começavam a desenhar na testa.

Na reta final de ganhar o seu burro, (e eu a pensar, como iria o meu pai descalçar aquela bota) nos últimos segundos, pouco mais de vinte talvez, o Acácio levantou-se da cadeira, chegou-se perto do meu pai e sussurrou-lhe, “Olhe lá, oh San-Tónio, e vossemecê também me dá a albarda?”

O meu pai atirou-lhe com uma gargalhada, tão caracteristicamente sua, ouço-a no momento em que escrevo estas letras, apesar de ter uns dez ou onze anos nessa altura. Mas aquela gargalhada pareceu-me mais uma explosão de alívio do que outra coisa.

“Ora porra, porra, Acácio, nos últimos segundos da aposta. Já perdeste o burro…”

E para surpresa minha, o Acácio nem contestou. Disse apenas,

“Támen num tinha onde por o burro”

O que me pareceu uma maneira bastante subtil de se desculpar a si mesmo pela sua derrota que quase era uma vitória. Mas há pessoas assim. Quase que ganham, quase que chegam lá, quase que conseguem… Numa corrida, quase que ganham. Às vezes serve-lhes de consolo ter chegado em segundo lugar, mesmo que se venha a verificar depois, que afinal, a corrida só tinha dois atletas.

Mas do que mais me lembro do Acácio. Tem haver com uma tábua. Cerca de 60cm de comprimento por 20 de largura. E como já lá vão para mais de quarenta anos desde estes acontecimentos, é muito provável que as dimensões da tábua andassem longe destas medidas, mas com centímetros a mais ou a menos, era uma tábua, tábua essa que me ficou na memória até aos dias de hoje, e para isso muito contribuiu o facto de ter levado com ela na cabeça.

Era um daqueles meus melhores dias, que tal como o Acácio, nem sempre eram os melhores dias de quem se cruzasse no meu caminho.

Os trabalhadores com quem o Acácio trabalhava, faziam obras de reparo e restauro numa casa perto de onde eu morava. Quando eu vinha da escola gostava de me aproximar deles e vê-los trabalhar. Até porque eram clientes da loja dos meus pais e por isso sentia-me à vontade pela confiança que com todos tinha. Mas nesse dia em particular, nenhum deles achava piada às minha irritantes brincadeiras. Coisas de moço.

Enervados, levados quase ao limite, avisaram por várias vezes que me fosse embora, que os deixasse em paz, que os deixasse trabalhar. Tal como o Acácio, também eu tinha alturas que quanto mais me avisassem que não devia fazer, era quando eu mais fazia. Por isso fiquei por ali, chato como uma mosca que enxotada mil vezes, mil vezes dá uma pequena volta no ar até pousar no mesmo sítio novamente.

Talvez influenciado pelos outros, o Acácio começou a ficar com os azeites.

“Vai-te embora moço…”

Reforçado por um outro colega de trabalho que acrescentou,

“Tás aqui tás-me a levar com a talocha nas fuças.”

E como ao dizer isto bateu com um pé no chão, como se fosse desatar a correr atrás de mim, eu fugi, mas apenas o suficiente para que não ficasse logo ali à mão de semear. Cerca de uns vinte metros, ou pelo menos a minha perceção de criança com cerca de dez ou onze anos, em relação ao que era nessa altura uma distância de vinte metros para mim.

Fiquei ali parado na ponta do quintal, mesmo na beira do muro que o separava da estrada, quintal esse que tinha cerca de um metro e meio acima do nível da estrada. Como o trolha apenas tinha simulado a corrida, não avancei mais. Não me apetecia nada saltar abaixo do muro, e por isso ali fiquei, a azucrinar-lhes a cabeça.

Já farto, o Acácio apoiou as duas mãos no cabo da enxada que utilizava para fazer um traço de massa, fuzilou-me com os olhos, e grunhiu,

“Raios parta o moço. Temos que o enxotar daqui.”

E sem mais delongas olhou à sua volta até apanhar a tábua da qual já apresentamos aqui as suas dimensões, muito embora sem certezas absolutas, dado o tempo que nos separa dos acontecimentos.

Confesso que nunca acreditei que ao ser lançada a tábua pelas mãos do Acácio, ela me fosse atingir, por isso, deixei-me estar onde estava, sem me mexer. A tábua subiu um pouco, a meio do caminho começou a descer, enquanto que eu, estático, seguia o seu trajeto. À mediada que a tábua se aproximava, numa espécie de rodopios largos, assobiando enquanto ia cortando o vento à sua passagem, comecei a duvidar da falta de pontaria do Acácio. Mesmo assim não me mexi. Fiquei apenas incrédulo, a seguir a tábua, de olhar fixo.

Quando tive certezas de que sim, que iria levar em cheio com a tábua na cabeça, era já tarde de mais para poder escapar. Por isso, levei com ela, ficando uns escassos segundos a balouçar na ponta do muro, até que caí para o lado da estrada. Foi mais o aparato do que outra coisa. Não me magoei por aí além, não parti a cabeça, apenas um pequeno galo, que de tão pequeno nem forças tinha para cantar.

Quanto aos trolhas, que presenciavam o sucedido, riram-se à brava. Foi bem provavelmente, para cada um deles, a melhor parte do seu dia.

Mas o Acácio não se riu. Ficou especado por momentos, também ele incrédulo com o sucedido, até que disse,

“Caraxo, se lhe quisesse acertar não acertava…”

O que me fez ver que a intenção do Acácio não tinha sido maldosa.

Acácio, Acácio, quase que ganhas, acertas quando não queres acertar, falhas quando queres acertar. Aqueles que diziam que eras tolinho, são em tudo tão iguais a ti, e tu tão igual a todo o mundo.

Mesmo assim gosto de pensar que eras apenas um louco. Quem não o é?

Nota do autor: Todos os factos desta história são verdadeiros, mas alguns deles foram misturados no seu contexto, na intenção de proteger o Acácio, que afinal de contas não era Acácio nenhum, muito embora a pessoa aqui descrita tenha existido (não faço ideia se continua viva) A intenção do texto é a de chamar a atenção para o problema da saúde mental, de uma forma séria e divertida ao mesmo tempo e para o respeito por quem dela sofre. Qualquer um de nós, quem sabe, num ou noutro momento da nossa vida.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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