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Comentário ao livro “Cozido no tempo”

A caminho, à procura da felicidade, Alcino Gomes Francisco, procura um atalho na escrita. A sua linguagem original lembra uma escrita automática e natural que se revela de alta qualidade e grande veia poética, inspirada e inspiradora.

Todo o texto de “Cozido-no-tempo” nos revela uma contínua coita de amor; frases e palavras tornam-se num espaço especial onde vida, ideias e sentimentos se procuram presencializar, permeados por uma ânsia que lhes dá consistência e até os mistifica. Texto, vida e contexto entram numa relação de osmose onde, passado, presente e futuro se unem, para gritarem uma realidade a só poder ser acontecida e vivenciada no sonho da memória.

Por outro lado, o texto transcende-se nas palavras que transportam uma vida soletrada para poder ser saboreada, como se nos encontrássemos nas caves das curvas da feminidade num acto de prova de vinhos e licores.

No meio de tudo isto surge um sentimento de transitoriedade que se fica por um sorver de existência e se deixa perder numa sensação de saboreio a evaporar-se por entre os sentimentos do desejo. A obsessão pela união sexual prende o autor, que é, ao mesmo tempo, texto e memória procurada, uma espécie de eu-tu-nós que não o deixa pousar nem instalar-se, por querer simultaneamente gozar e compreender a vida.

O orgasmo parece começar por acontecer entre recordação e texto: “escrevo a palavra que me bebe até me conseguir perder”.

Teima na obsessão que o prende ao sonho de uma experiência indelével tida e cuidada na memória, que o condiciona a decidir-se por viver na procura de um lugar onde se possa encontrar para finalmente poder perder-se; a vida real não lhe concede tal ensejo talvez porque procura no encontro sexual a celebração de uma liturgia que nenhuma mulher poderá dar e por isso declara: “Tento fugir para lugar nenhum, como se dentro de dois houvesse um”…. O encontro desse “lugar nenhum” expressa a saudade mítica pelo ser andrógino da união dos géneros (masculinidade e feminilidade) num só ser.

O desejo passa a ser o movente de uma procura que se quer conduzida pelo destino, mas na esperança que o texto lhe resolva a situação e o liberte: “Procuro aqui e ali o que perdi e o que quero encontrar sem saber onde achar o desejo de amar”. Na tradição portuguesa das “Cantigas de Amor”, Alcino vive no e do sofrimento de amar conformando-se a viver do desejo e da lembrança da amada por não saber como conseguir uma hora do tempo dela.

A amargura do desencontro com a amada, vem de uma procura existencial que se torna num fado a acontecer entre o ter e o ser, sem alternativa. Na ânsia de se encontrar consigo mesmo (a ipseidade que se descobre e se transforma em narrativa da relação com o outro), Alcino queixa-se perante o tal outro existencial em si, que ao ser projectado em Carol Linda, ganha foros de experiência directa e real: “Porque teimas em continuar a procurar o lugar onde não estou e não procuras apenas quem eu sou?” A não conformação em aceitar uma realidade de ajustarem primeiro um caminhar comum a dois, leva o protagonista ao refúgio de um poder ser inteiro na saudade, tornando-se esta  a guardiã do passado, do presente e do futuro: “nesse desencontro invento-te na forma de estrela”, aquela que seria o objecto do seu amor.

Fica preso num amor a fluir entre o platónico e o sensual. Mergulhado numa filosofia existencialista reconhece-se numa ânsia de existir para depois se poder tornar (essência). Faz lembrar a relação do fundador do existencialismo, Søren Kierkegaard, com a sua amada e inspiradora Regine Olsen. O poeta Alcino Gomes Francisco resume-se e rende-se confessando em nome próprio: “Sigo Alcino a tocar este sino que tu és dentro de mim…”

Ardente por histórias não escritas, está condenado a viver no e do sofrimento de uma reminiscência idealizada que teima a não deixar concretizar-se; refugiado na lembrança e na escrita experimenta lá a masturbação que a realidade demasiadamente desejada não consegue dar-lhe (uma falha na relação com a realidade). A fantasia, a ânsia, a saudade de algo quase divino leva-o ao desengano de um amor fugidio que não permite realização e que o leva a curtir um amor quase ideal com as letras que se tornam em verdadeira poesia; nelas encontra a outra parte de si, a feminilidade de que se tornou insaciável e que determina o seu destino.

Em “um sorriso inventado” procura refugiar-se no “útero” da memória “à procura de a encontrar e fornicar as coxas de um pensamento que quero escrever e não quero divulgar”. Quer esquecer-se de si mas, sem sentido, segue os sentidos a tropeçar no amor-desejo que persiste em definir o seu eu e por mais que navegue, por mais “musas” que tenha, sente que a sensualidade o não deixa configurar-se a ponto de o libertar e, por mais que tente libertar-se do fatal desejo, mesmo na sua concretização, fica sempre uma ferida de amor, a única realidade que o mantem.

Como pessoa aberta e amante da liberdade pressente em si um certo niilismo, que o leva a querer esquecer quem é; quer viver no entremeio, do não saber e do processo, viver como texto do decurso do coito do encontro numa vagina que o prendeu: “Sozinho de mim… E eu a sonhar…. me escondo dos olhos que não quero ver…” Não encontra fora o que procura e por isso sofre e se vira para si na desilusão de o amor sonhado não corresponder ao real.

No “Ombro que procuro”, texto admirável, vislumbra-se a resolução do enigma do seu deambular profundamente poético: “ Lembro-me de ti perdido neste sentido de te encontrar de quem nasceu depois de partires, para sentires que a herança que deixaste vive e revive na dança e na haste das letras que te escrevo “ e de que toda a poesia é um grito pelo reencontro de uma realidade situada naquela mulher concreta que embora idealizada não deixa de ser companheira no leito das letras: “volto para ti a chorar como uma criança que não tem onde atracar….” Repete o encontro na arte que se torna a realidade nas lágrimas que chora. Na dor do errar e do andar perdido dela, consegue “parir lágrimas porque estas são reais ao passo que a palavra possa ser uma tentativa de parir”. Nas dores do dar à luz, Alcino descreve e reescreve-se na divagação de um sonho e de uma memória, o local fatídico de parto, onde se gasta a si mesmo: “ É nessa memória que te liberto a história dos rebentos nascidos e achados numa placenta que me alimenta e me sustenta na saudade que tenho de ti. É nesse registo que invisto isto no sonho onde me perdi”.  O sono torna-se como que no lugar oculto do encontro que é ao mesmo tempo nascimento e sepultura.

À espera, de sonho em sonho vive sem poisar, como vulcão que ininterruptamente lança a larva que não encontra solo que a sustente e por isso se dilui num fumo de desejo insatisfeito.

Alcino, o eterno Romeu, ao viver nas pegadas de Julieta, não encontra um porto seguro para a sua existência que não se pode reduzir a esperar; procura-a então na vivência do texto, mas também aqui se encontra perdido num labirinto entre amor e fado.

Uma certa desilusão da vida condu-lo a uma cisma de algo indigerido, mas que, por seu lado, gera uma incubação de criatividade a irromper sempre de novo, na necessidade de recrear-se: “invento façanhas de me ler….

Na procura de um desejo, mas sempre “à espera”, segue as sombras da recordação, mas, mais que à procura, anda à espera, como que vestido de memória, desespera por o sonho não se tornar numa realidade que não chega porque não depende só da sua procura. A sensação do procurar confere um gozo tipo masturbação e como tal insatisfeito por não se dar no lugar do encontro ansiado e como tal constata que a recordação não cria o gozo desejado.” Volto frustrado para escrever desalmado por não te conseguir inventar”. Sempre “à procura” vai iludindo a esperança e assim prolongando a contradição em que se torna uma vida idealizada que persiste em viver da memória:” Vou á tua procura nessa loucura de te ter sem saber por que razão te deixaste morrer”. Com ela queria aprender a viver aquela vida que ela não lhe ensinou.

“Condenado a escrever”, como um abusado da existência e desterrado entre texto e leitura e embora deixando extravasar a sensualidade na palavra reconhece: “a escrever, sinto-me uma puta a parir”. Vive a vida, mas não quer uma explicação para as vivências envolvidas de mistério. Consciente da situação sente-se lúcido e chega mesmo a confessar: “Cozinho sonhos em molhos molhados e descubro que sou eu que me estou a perseguir” …

“Cozido-no-tempo” é a descrição de uma existência que não se contenta com o calor do tempo que o cozeu e cozinha.

Através da escrita chega onde, doutro modo, não se pode chegar, consciente embora de que o desejo que o devora, a mulher lembrada e o seu eu, transcendem a palavra que teima em perdê-los no contexto de um texto que se revela como destino.

Alcino, procura o alter-ego entre o verbo e o complemento, na esperança de, na qualidade de substantivo próprio, não ser fixado num lugar qualquer da sintaxe.

António da Cunha Duarte Justo

 

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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