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Aristides de Sousa Mendes ou como continuamos incapazes de assumir o Humano

A forma como nos relacionamos com a memória e, dentro desta, com determinadas figuras ou momentos, é chave para se chegar aos aspectos mais recônditos da identidade. No caso da relação entre a memória portuguesa e o passado judaico, o “dossier” Aristides de Sousa Mendes é um caso verdadeiramente paradigmático no que tem de reações díspares, contraditórias, mesmo.

A figura de Aristides de Sousa Mendes e o seu legado, a sua acção enquanto cônsul em Bordéus durante a II Guerra Mundial, são dos campos mais interessantes para se compreender como, por um lado, há um enaltecimento no gesto deste homem que terá salvo milhares de judeus e, por outro, uma incapacidade de o valorizar e homenagear ao mais alto nível ou, mesmo, uma necessidade de certos meios nacionais o denegrirem e lhe negarem os actos sobres ditos pelos anteriores.

A história é sobejamente conhecida, tendo já resultado em adaptações televisivas e cinematográficas, assim como em inúmeros livros: contra ordens de Salazar, Aristides de Sousa Mendes passa um elevadíssimo número de vistos contrariando todas as indicações superiores, chegando a fazê-lo na rua e nos lugares mais inesperados, ajudando a salvar milhares de pessoas, especialmente judeus, em Junho de 1940.

O reconhecimento máximo veio por parte do Estado de Israel em 1961 quando foram plantadas vinte árvores em sua memória nos terrenos do Museu Yad Vashem (Autoridade de Recordação dos Mártires e Heróis do Holocausto), tendo sido reconhecido em 1966 “Justo entre as nações”. Mais recentemente, em Outubro de 2017, a UNESCO aprovada o Livro de registo de vistos concedidos (69850) [livro de registo de vistos enquanto Aristides Sousa Mendes foi cônsul em Bordéus] como “Memória do Mundo”, o décimo texto português inscrito nessa muito restrita lista onde apenas constam 427 textos [1].

Em Portugal, num campo mais popular, é de lembrar o programa da estação televisiva RTP, “Os Grandes Portugueses”, que teve lugar em 2007, e que colocou Aristides de Sousa Mendes em terceiro lugar, com 13% dos votos, apenas atrás do ditador António de Oliveira Salazar, com uns fartos 41%, e de Álvaro Cunhal, com 19,1%. Na lista de vencedores, o cônsul ficava à frente de nomes como D. Afonso Henriques, Luís de Camões, D. João II, Infante D. Henrique, Fernando Pessoa, Marquês de Pombal e Vasco da Gama. A visão popular, altamente questionável logo pela personagem que colocou como vencedora, dava a Aristides uma posição muito significativa em toda a História de Portugal. Contudo, esse reconhecimento popular em nada era traduzido em acção política equivalente.

De facto, o reconhecimento por parte do Estado Português tem sido lento e repleto de controvérsias. Em 1986, Mário Soares condecorou Sousa Mendes, a título póstumo, com o grau de Oficial da Ordem da Liberdade. Mas só no ano seguinte, em 1987, teve lugar uma homenagem pública promovida pelo Estado Português, entregando-se à família a insígnia da referida condecoração. Em 1994, o mesmo Presidente Mário Soares inaugurava em Bordéus um busto em homenagem ao cônsul junto à morada do consulado de Portugal. No ano seguinte, ainda Mário Soares agraciava-o, a título póstumo, com a Grã-Cruz da Ordem Militar de Cristo. Nesse mesmo ano, a Associação Sindical dos Diplomatas Portugueses (ASDP) criava um prémio anual com o seu nome. Em 1998, no seguimento do processo de reabilitação oficial da memória de Aristides de Sousa Mendes no Ministério dos Negócios Estrangeiros, Sousa Mendes foi condecorado com a Cruz de Mérito. Por fim, a 22 de setembro de 2016, foi elevado a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade por Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República.

Contudo, falta o que pareceria o corolário lógico: a panteonização. Em julho de 2014 surge uma petição online que pede a ida dos restos mortais de Aristides Sousa Mendes para o Panteão Nacional. Não foi além das 760 assinaturas no primeiro mês, e das 2100 até aos dias de hoje. Contudo, o texto de apresentação desse instrumento que pretendia levar a questão a debate parlamentar é claro no sentido humanista, fugindo a qualquer aspecto que pudesse ser controverso, valorizando o essencial:

“Aristides de Sousa Mendes dignificou e elevou a condição humana. Foi um homem e um português justo e bom, que teve a coragem de se erguer contra a injustiça dos homens, salvando milhares de vidas e tendo pago um preço elevado por isso. É hoje uma referência ética, moral e cívica para Portugal e para o mundo.”

Muito se tem escrito, debatido, sobre essa possível entrada no mais restrito grupo personalidades resgatadas para um lugar eterno na memória colectiva, especialmente aquando da última trasladação, a de Eusébio da Silva Ferreira, jogador de futebol.

Entre muitos outros, entre eles, José Jorge Letria, escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, ou Rui Tavares, historiador e político, têm sido das figuras públicas que mais têm trazido esta questão ao debate público. A 19 de Julho de 2017, escrevia a crónica “Merecemos Aristides no Panteão?”, no jornal PÚBLICO. Historiador de uma geração pós-25 de Abril e antigo deputado do Bloco de Esquerda, partido da esquerda democrática, de cariz urbano, são significativas as suas palavras ao mostrar a dificuldade neste processo:

“Era hoje minha intenção escrever sobre Aristides de Sousa Mendes, que nasceu neste dia em 1885, e defender que as portas do Panteão Nacional se abram para quem, ao desobedecer à hierarquia do Estado para auxiliar a fuga de milhares de refugiados maioritariamente judeus durante a II Guerra Mundial, não pode deixar de ser um dos portugueses mais importantes da história. Como é sabido, a ditadura puniu Aristides pela sua coragem, e mesmo a democracia foi lenta a desmontar as ridículas objeções que iam impedindo que justiça lhe fosse feita, ao menos postumamente. Foi só em abril deste ano que Aristides foi agraciado com a Ordem da Liberdade. Dar-lhe honras de Panteão tornará bem claro que, para o Portugal democrático, a desobediência corajosa de Aristides é um exemplo que nos norteia.

Não tenho dúvidas de que é nossa obrigação moral e política dar-lhe o Panteão. Aquilo de que eu duvido é se é mesmo verdade que o seu exemplo nos norteia. Para isso seria necessário que, ao menos entre a classe política, entre os representantes do povo, e entre as lideranças dos maiores partidos portugueses, fossem absolutamente consensuais os valores dos direitos humanos. Seria necessário que, entre essa classe política, não fosse deixado espaço à mínima dúvida de que o racismo no discurso público é sempre intolerável. Seria necessário que, nos atos banais do preconceito no quotidiano, houvesse vontade política de mostrar o que significa ‘ter aprendido com a história’. Seria necessário que tudo isto fosse evidente, para lá de esquerda ou de direita, para lá de conveniências políticas do momento, e certamente para lá da maneira como encaramos os debates sobre o que é (ou não é) o politicamente correto. Infelizmente, nada disto é ainda garantido em Portugal, nem consensual entre a nossa elite política, nem dado por adquirido no debate público.”

Esta situação poderá dever-se a duas questões/situações. Por um lado, e num campo de estrito zelo pela legalidade burocrática, Aristides de Sousa Mendes foi, sem dúvida, um funcionário público que não agiu dentro do que a sua hierarquia lhe indicara. No limite, Aristides, ao ir contra uma ordem superior, foi um mau exemplo, tendo posto em causa a máquina de diplomacia nacional. Por outro lado, Aristides de Sousa Mendes foi alvo das mais fantásticas campanhas de difamação das últimas dezenas de anos em Portugal.

Entre os vários detratores, conta-se o embaixador João Hall Themido que, em 2008, escreveu as suas memórias, editadas pelo próprio Ministério dos Negócios Estrangeiros, Uma Autobiografia Disfarçada, com um capítulo intitulado: “A mitificação de Aristides de Sousa Mendes”. José Pedro Castanheira, no semanário Expresso, a 1 de Novembro, sistematizava os inúmeros aspectos picarescos e, por vezes, inesperados, deste livro:

“O embaixador acusa o cônsul de ‘actuação irregular’. ‘De forma totalmente irrealista, fala-se em 30 mil’ o número de vistos ‘concedidos em apenas alguns poucos dias pelo cônsul e seus familiares, de forma cega, no consulado e até nos cafés da vizinhança’. Themido sublinha ‘a necessidade de manter disciplina nos serviços que de forma directa ou indirecta pudessem, com a sua actuação, afectar o estatuto de neutralidade’ do país. Para o embaixador, Aristides foi um ‘mito criado por judeus e pelas forças democráticas saídas do 25 de Abril’. E mais à frente: ‘quando a família’ do cônsul, ‘grupos judaicos e forças da esquerda ressuscitaram o assunto, procurei saber mais sobre o ocorrido’. Observa que Aristides apenas ‘pertencia à carreira consular, considerada carreira menor em relação à carreira diplomática’. Por outro lado, o processo disciplinar ao cônsul em Bordéus ‘foi o último de vários de que foi alvo ao longo da carreira, quase sempre por abandono do posto ou concussão’. Nota que a maioria dos processos ‘desapareceu misteriosamente’ do MNE e que o de Bordéus está ‘incompleto’. Assim, considera ‘incompreensível criticar’ o ministério, ‘incluindo o ministro, por ter aplicado a lei nas circunstâncias da época.’

Este grupo de acusações, vindas de dentro da máquina ministerial, era reforçada com o embaixador Carlos Fernandes, autor do livro O cônsul Aristides Sousa Mendes. A Verdade e a mentira (Editora Apolo 70, 2013). A 2 de Julho de 2013 o jornal O Diabo publicava uma entrevista a Carlos Fernandes, “A verdade sobre Aristides Sousa Mendes”, uma fonte excepcional na forma como sistematiza os conteúdos usados para denegrir a figura de Sousa Mendes. Sistematizemos:

  • Aristides não salvou ninguém porque em 1940 ainda ninguém estava em perigo de vida: “Só depois, em 1942, na Conferência de Wansee é que é decretada a solução final contra os judeus e começa a perseguição. Não é que os tratassem bem antes, mas não os punham em campos de concentração. O Aristides não salva ninguém da morte, porque em 1940 ninguém estava em risco de vida”;
  • O rabi Kruger, a figura marcante que o levara à sua opção por passar os vistos, era um “Zé-ninguém”; “estragou-lhe a vida”. “O Kruger devia ser um pobretana, porque senão tinha ido comprar um visto ao Haiti que os vendia”;
  • Sobre a necessidade dos vistos para Portugal: “Só precisava de pedir visto para Portugal quem não tivesse visto para outro país ou viagem marcada para lá”;
  • Sobre o número de vistos passados: “O Rui Afonso fala em 30 mil, dos quais 10 mil são judeus, mas só cá chegaram uns poucos de milhares até Junho de 1940. Se estavam em perigo de vida ficaram lá? Para onde foram? Para Espanha não foram. É claro que nunca existiram”;
  • Sobre a reabilitação: “É uma vergonha para a Assembleia da República”;
  • Naturalmente, a leitura moralizante teria de surgir: Aristides cai à cama com uma depressão em Junho de 1940 devido à relação que mantinha com uma amante, que acabou por engravidar: “conheceu uma rapariga nova, muito culta e muito modernaça, com quem se envolveu e que acabou por engravidar. Prometeu divorciar-se da mulher e casar com ela. Ora, ele vivia no consulado com a família que assistia ao escândalo que a amante lá fazia. Imagine a tragédia!”;
  • Finalmente, o regime de Salazar não o perseguiu, “protegeu-o”.

Este texto é único na capacidade demagoga de acusar, de limpar o passado (até o nazi); de denegrir e de, sem pudor, desvalorizar a ajuda a muitos judeus. De uma desonestidade intelectual gritante, este texto é uma peça de arte suprema de negar o valor da vida humana e de quem a salvou. Muita tinta continuará a ser gasta sem que se consiga colocar no topo dos elementos a valorar o simplesmente humano. Valoriza-se a leitura moralizante, valoriza-se o acto de desobediência, valoriza-se o seu quadro financeiro e familiar, mas não se consegue colocar acima de tudo isso o facto de ter salvo pessoas.

Nem que tivesse sido só uma, isso já valeria mais que o que fez ou faz qualquer um de nós. Mas parece que não é suficiente ter salvo pessoas…​

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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