“20 anos mais tarde”: Um país insensível a quem vive com a surdez

“20 anos mais tarde” podia ser um título de filme, (título inspirado no filme do meu querido amigo Alfie Williams), ou quiçá uma dessas comédias dramáticas que nos arrancam tanto um sorriso quanto uma lágrima. Mas, em Portugal, este título serve antes para ilustrar o vergonhoso atraso estrutural com que se tratam — ou, melhor dizendo, se ignoram — questões fulcrais relativas à inclusão e à acessibilidade das pessoas com deficiência.
A mais recente afronta dá pelo nome de prazo: o Estado português terá vinte anos (!) para adaptar as caixas ATM às necessidades das pessoas com deficiência. Vinte anos. Duas décadas. Um prazo que, por si só, revela o quão insignificante continua a ser o peso das pessoas com deficiência nos desígnios políticos e orçamentais do nosso país. A metáfora do caracol, tantas vezes usada para descrever a burocracia nacional, fica curta perante tamanha letargia.
Enquanto pessoa com deficiência auditiva e visual, que há anos lidera uma causa nobre pela dignificação da surdez, não posso senão sentir indignação. Presido e sou sócio fundador de uma associação que tem como missão não só pugnar pela reabilitação auditiva, mas também garantir que cada pessoa encontra o apoio e a acessibilidade ajustados ao seu caso concreto. Conheço por dentro as dificuldades diárias, a discriminação silenciosa e a tremenda desinformação que grassam quando o assunto é a surdez.
Portugal orgulha-se, em discursos bonitos, de ser inclusivo. Mas na prática, vive ainda num paradigma assistencialista e ultrapassado, onde se confunde caridade com justiça social. Tudo o que se faz sabe a pouco — muito pouco. E não por falta de bons exemplos lá fora: países do Leste europeu, que tantas vezes menosprezamos num elitismo bacoco, apresentam índices de desenvolvimento e sensibilidade para as questões da inclusão e acessibilidade bem superiores aos nossos. Portugal arrasta-se, «a reboque» da União Europeia, cumprindo apenas o mínimo indispensável para não ser sancionado.
Pergunto: quanto vale a dignidade de uma pessoa surda? Quanto tempo mais teremos de esperar para que um simples terminal multibanco possa ser usado autonomamente por quem tem limitações auditivas ou visuais? Quanto pesa, no orçamento nacional, a plena cidadania de quem vive com uma deficiência? A resposta é dolorosa: pesa pouco, quase nada.
A surdez, em particular, continua a ser alvo de um obscurantismo atroz. Faltam campanhas de sensibilização robustas, formação adequada aos profissionais de saúde e educação, estratégias de empregabilidade que não releguem estas pessoas para a margem. Persistem mitos, preconceitos e, sobretudo, uma assustadora ignorância social sobre o que significa viver sem ouvir — ou a ouvir mal.
Este é um apelo — mas também um grito de revolta. Não podemos, nem queremos, esperar mais vinte anos para ter aquilo que é nosso por direito: acessibilidade plena, respeito integral e igualdade de oportunidades. Não somos cidadãos de segunda. Não aceitamos que a nossa dignidade seja adiada para um calendário obscuro que só favorece quem prefere fazer de conta que não existimos.
A inclusão é hoje. A acessibilidade é já. Qualquer prazo dilatado é, simplesmente, um prolongar da injustiça. E contra isso, não nos calaremos.
António Ricardo Antunes Miranda