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Porque estudar os sefarditas?

Ss datas são muitas vezes os marcos a que nos agarramos para definir uma escala no conhecimento e nos sentimentos. No campo dos Estudos Sefarditas (estudo dos judeus de origem peninsular), algumas datas centrais na História de Portugal podem ser de imediato elencadas. Falamos, é claro, de 1492, 1496/7, 1506 e 1536, as datas da entrada em Portugal dos judeus fugidos de Castela, da data do decreto de expulsão de Portugal e quase imediata conversão forçada, falamos ainda do terrível massacre de Lisboa no dia 19 de Abril e, por fim, da instalação do Tribunal do Santo Ofício, a Inquisição, respectivamente.

Subvertendo os princípios de humanismo, poderíamos fazer uma aproximação inesperada ao valor destas datas na nossa História: porque razão dar atenção a eventos de há cerca de meio milénio? Já tanto tempo passou, quase não há judeus em Portugal, qual o sentido de marcar as datas e a memória com eventos e publicações como esta que aqui trazemos ao público, fazendo vir ao de cima questões e situações incómodas?

De facto, não se trata da postura de uma sociedade que gosta de recordar o que é negativo, seja por um sentido masoquista, seja pelo prazer mórbido de olhar a morte de frente, e dela gostar. O sentido e a justificação para que, meio milénio depois, queiramos olhar para o passado de Portugal como realidade também sefardita reside em algo de muito mais profundo, na nossa própria consciência.

E nessa profundidade do que é a consciência e o inconsciente, alguns aspectos precisam de ser trazidos ao lume brando da alteração das mentalidades, para que nos possamos reencontrar com a memória, com a nossa identidade e com o que queremos fazer de nós mesmos no futuro. Sim, porque o olhar para a memória, a forma como o fazemos, tem como base opções, e essas marcam a forma como vemos o passado, mas definem muito mais como seremos no presente e no futuro.

Só o simples facto de se olhar para este passado é já uma postura em nada natural na nossa cultura. Apenas há poucos anos as autarquias venceram as resistências internas às suas comunidades na assunção do peso da herança sefardita na sua história e na sua identidade. Só há quase tanto tempo, um pouco mais, mas muito pouco mais, a academia criou espaços e possibilitou a existência de especialistas na temática, sendo um campo ainda verdadeiramente embrionário, com os primeiros grandes e seminais trabalhos a serem editados só na década de setenta do século XX -refiro-me, em especial, aos trabalhos de Maria José Ferro Tavares e António Borges Coelho; a Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da Un. de Lisboa (link: http://catedra-alberto-benveniste.org/) nascia em 1996, sendo ainda hoje o único centro de investigação em Portugal sobre a temática.

Entre medo religioso, conservadorismo endémico e incapacidades técnicas inexplicáveis -como no caso da inexistência, hoje, de uma escola de ensino do hebraico-, o aparecimento da Rede de Judiarias de Portugal veio consolidar uma dinâmica de reencontro com essa memória que também a posicionou no campo mais certo da cidadania.

De facto, nos últimos anos, mais que um desenvolvimento significativo do meio académico neste campo, fruto da difusão e da adesão a esta associação de inúmeros municípios, foi o cidadão que começou a ultrapassar os preconceitos, as marcas sociais negativas, as ideias feitas, valorizando muitas vezes o que estava à frente dos seus olhos, no seu próprio ambiente familiar, deixando de o esconder e de com ele ter medo.

Porque a História dos Sefarditas portugueses é, também, uma história de medo construída nas cidades, nas vilas e nas aldeias onde o cripto-judaismo se foi implantando como forma de vida dupla, com o “credo na boca” para provar a qualquer momento que se era bom católico. É a história de uma sociedade que, com as perseguições que se avolumaram ao longo do século XV e com a instalação da Inquisição, posteriormente, se transformou numa sociedade da denúncia, da mediocridade, do desrespeito pela consciência e da menorização do pensamento e recusa à crítica.

E, regressando à questão lançada quase no início deste texto, quando interessa questionar a razão de hoje, meio milénio depois, regressar a este tema, ela pode encontrar-se no facto de, com esta reflexão, se perder a orfandade que se tinha ganho quando a Liberdade foi tão profundamente afastada das nossas mentes à medida que um sistema de constrangimento da consciência se tornou normal.

Se hoje devemos afirmar a herança sefardita em Portugal, também temos que equacionar o que, como colectivo, perdemos com a Inquisição, com o desenvolvimento de um catolicismo inquisitorial, com a fuga das mais brilhantes mentes e dos possuidores das melhores competências e mais robustas riquezas. Se temos algumas das regiões mais pobres da Europa, isso deve-se, em muito ao trabalho da Inquisição. Se hoje somos ainda dos países europeus com maior taxa de analfabetismo, isso é também um reflexo de uma sociedade onde o conhecimento e a crítica eram vistas como potenciadores da fuga à ortodoxia religiosa. Se continuamos a ser, em tanto, uma sociedade marcada pela denúncia e pela calúnia, isso é em tanto o resultado de séculos de existência de um tribunal que, além de perseguir por motivos religiosos, funcionava com base na denúncia não provada.

O reencontro com a memória sefardita é, naturalmente, um reencontro com mais que a nossa memória. É uma possibilidade de pacificação com um passado que nos foi colado e que se tornou a nossa natureza. Mas um passado que também tem, na herança sefardita, o gosto pelo risco, pela descoberta, pelo empreendedorismo, pelo cosmopolitismo e pela cultura.

Hoje, numa sociedade laicizada, Portugal procura (re)conhecer a sua História Sefardita. Não se trata de uma simples nostalgia de encontro com os seus grandes, nem se trata de um ainda mais simples olhar de coleccionador para uma factologia que deve conhecer.

A busca pelo conhecimento da História Sefardita, o valorizar desse património e a recuperação ou construção de espaços a ela dedicados, é um equacionar da própria identidade nacional, hoje sem os constrangimentos do pensamento inquisitorial, libertos para um reencontro que, afinal, é connosco e não com nenhuns “outros”.

Uma exposição e uma sistematização de significados

Hoje, em pleno século XXI, ao olhar para a História dos Sefarditas portugueses, percebemos o importante contributo que estes deram para a modernidade, para o desenvolvimento da ciência, das artes, da filosofia e da economia.

A exposição «Heranças, Vivencias e Património Judaico em Portugal» tem como objectivo apresentar ao público em geral uma visão diacrónica das principais linhas, momentos e temáticas em que os sefarditas portugueses foram centrais na História de Portugal.

Não se pretende uma glorificação nem a criação de uma narrativa laudatória, mas apresentar, de forma isenta e rigorosa, a História destas comunidades e seus indivíduos que tão importantes foram, e são, para a identidade nacional.

A exposição está organizada em módulos, tendo todos eles um grupo de informação em português e em inglês, assim como um significativo leque de imagens.

O elenco das temáticas começa pelas «Origens / primórdios da presença judaica no território», levando o visitante / leitor a tomar consciência da antiguidade da presença hebreia no território a que hoje chamamos Portugal, presença em mais de um milénio anterior à “nacionalidade”.

Continuaremos com a verificação do peso e das formas sociais de vida na Idade Média, especialmente «Na constituição e consolidação do Reino de Portugal». Para este período, veremos ainda a dinâmica cultural ímpar, a «Dinâmica e consolidação cultural», com especial foco na iluminura.

Centrado nos séculos XIV a XVI, veremos e abordaremos «O crescendo da intolerância», processo que culminou com a instalação do Tribunal do Santo Ofício em 1536. Com este módulo, nasce uma nova fase na nesta abordagem à história sefardita, centrada em dois grupos expositivos: «Inquisição e comunidades cristãs-novas», e «A Diáspora planetária».

A contemporaneidade é, naturalmente, contemplada no plano deste projecto. O leitor / visitante perceberá «O ressurgimento judaico em Portugal após 1821», onde pontua o fim do Tribunal do Santo Ofício, como marco delimitador da abertura deste módulo. Daremos atenção ao quadro d’ «A II Guerra Mundial», e terminaremos com um olhar, um vislumbre em tom de biografias de áreas e de épocas diversas, sobre o «Legado e Identidade (Ciência | Cultura | Arte | Direito | Economia)».

Terminando, mais que dar “conteúdos” sobre a História Sefardita de Portugal, pretende-se com esta exposição mostrar o quanto de nós está nesta herança, nesta memória. Esta exposição não é sobre judeus que estiveram em Portugal; não, esta exposição é sobre portugueses que são ou eram judeus, e de como por isso foram perseguidos, sendo que nos deixaram inegáveis marcas de modernidade das quais somos herdeiros directos.

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Com a Direcção Científica da Cátedra de Estudos Sefarditas «Alberto Benveniste» da Faculdade de Letras da Un. de Lisboa, esta exposição é da responsabilidade da Rede de Judiarias de Portugal, integrada no projecto «Rotas de Sefarad – valorização da identidade judaica em Portugal», financiado pelo programa EEA Grants.

Esta exposição é inaugurada na Torre do Tombo no dia 20 de Março, pelas 18h, e contará com a presença de S. Exa. o Presidente da República, Professor Doutor Marcelo Rebelo de Sousa. Poderá ser vista na Torre do Tombo até ao dia 29 de Abril; posteriormente percorrerá diversas autarquias da Rede de Judiarias.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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