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Juliana Carneiro da Cunha: o teatro como partilha, disciplina e paixão

Em quase cinco décadas de carreira, Juliana Carneiro da Cunha tem deixado sua marca por uma sucessão de trabalhos do mais alto nível, seja na dança, no teatro, no cinema ou na televisão.

Formada pelo Mudra, escola de dança fundada por Maurice Béjart, é hoje uma das grandes estrelas do Théâtre du Soleil, premiada companhia teatral francesa, criada nos anos 1960, por Ariane Mnouchkine.

Sua trajetória como artista tem início na dança. Quando a dança cedeu o palco para a atriz?

Em 1974, tendo terminado os três anos de Mudra, escola criada por Maurice Béjart, em Bruxelas, participei de uma montagem de teatro clássico, Bodas de Sangue, do Lorca, fazendo o papel da noiva. Depois, foi somente aqui no Rio, ao participar de As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant é que fui ser aceita, digamos, como atriz. Em seguida, veio Mão na Luva, com Nanini e Aderbal Freire. E assim, aos poucos, fui sendo chamada a trabalhar como atriz, mas sempre “dançando” com meus personagens.

Há muitos anos você mora fora do Brasil, trabalhando em companhias estrangeiras. Por que saiu do país e escolheu a França para viver e trabalhar?

Saí de casa muito moça, aos 17 anos, e comecei a viajar pelo mundo. Era meu motor de vida a viagem. Escolhi a França, porque lá encontrei trabalho e porque meus pais tinham o hábito de falar francês em casa quando eu era pequena. A musicalidade da língua me encantava, me fazia sonhar .

O ator e crítico Louis Riccoboni afirma: “Na arte da representação a primeira das regras é supor que estás só no meio de mil pessoas.” Esta regra é indispensável no momento da atuação ou existem outras primeiras regras que o ator pode empregar no momento em que está atuando?

Nunca tinha ouvido falar nesta regra. Não saberia como utilizá-la. Para mim, a primeira regra é ouvir e escutar. Olhar e ver. Estar no presente de cada segundo, não pensar, receber e devolver.

“A imaginação cria coisas que podem existir ou acontecer, ao passo que a fantasia inventa coisas que não existem, nunca existiram nem existirão . No entanto, talvez um dia elas possam existir. Quando a fantasia criou o tapete mágico, quem imaginaria que nós voaríamos através do espaço?” Estas lúcidas observações do professor Jacques Scherer, a meu ver, definem com clareza o sentimento do espectador ao assistir um bom espetáculo de teatro. E para o ator que está em cena o que prevalece: a viagem ou a técnica da representação?

Não sei o que prevalece, embora lembre da alegria que foi minha primeira viagem num tapete voador. Tinha em alguma parte do cérebro a consciência de que estava usando uma técnica, mas acho que o que prevalece é acreditar e ver. Via as casinhas lá embaixo e os pássaros voando a seu lado. Os rios como serpentes e os prados. Sentia vento no rosto, nas roupas e nos cabelos também. Quando estamos voando, não queremos voltar à nossa realidade.

Você fez parte da “escola de formação do intérprete do teatro total”, de Maurice Béjart, que busca o gesto como elemento principal no trabalho do ator. Qual foi a importância desse método em seu desenvolvimento como atriz?

Devo dizer que minha primeira mestra foi dona Maria Duschenes, no Sumaré, bairro de São Paulo, onde morei. Fui sua aluna por dez anos e a primeira escola que cursei fora do Brasil foi a Folkwangshule, onde dona Maria também havia estudado. O método era o de Kurt Joss e Laban. Mas foi com dona Maria que comecei a me encantar com o movimento e as dinâmicas. No Mudra, de Béjart, tivemos uma formação completa: dança, teatro, canto, yoga, ritmo, circo. Foram três anos maravilhosos e intensos. Sempre levei comigo todos os aprendizados, sendo que o último foi e continua sendo no Théâtre du Soleil.

Em Os Náufragos da Louca Esperança, espetáculo de Ariane Mnouchkine, o espectador é tomado por um êxtase. Sua primorosa atuação, aliada a um trabalho de equipe extraordinário, suscita-nos o desejo de saber que caminhos vocês percorreram para a construção das personagens. Pode nos falar a respeito?

Foram onze meses de ensaios, de descobertas e propostas. Lemos e vimos filmes sobre a época, La Belle Epoque, realmente maravilhosa. Onze meses cheios de inovações, aventuras, risos, muito humor, alegria, criatividade, folia. Íamos propondo sem parar durante os quatro primeiros meses, ainda sem saber como aquilo iria se encaixar num fio condutor para se tornar um espetáculo. Mas isso faz parte da ciência de Ariane. Nós nos divertimos muito. Madame Gabrielle foi aparecendo. E Alexandre, que me transformava em homem também . As mães sempre acabam ficando comigo, Madame Paoli, a mãe italiana, e a mãe índia. As personagens vão surgindo e ficam as que são uma evidência. Muitas vezes nos apegamos a cenas ou personagens que acabam não ficando na peça, fazemos uma cerimônia de adeus. Em Os Náufragos pude sentir um trabalho de equipe como nunca havia sentido antes.Ficamos impressionados, nós mesmos. Esta é uma sensação muito prazerosa.

Como é trabalhar com uma diretora como a Ariane Mnouchkine? É possível estabelecer diferenças entre a peculiar linha de trabalho que ela segue e a de outros diretores com quem trabalhou?

No inicio, podemos temer Ariane, porque ela é como um monumento que representa o teatro. A intensidade dos seus sentimentos em relação às exigências, ao rigor ,à arte, à verdade, à honestidade e mesmo à humildade, nos fazem, talvez, duvidar da nossa própria integridade como seres humanos e artistas. Logo após, decidimos seguir seu exemplo e nos tornar seres melhores, artistas melhores. Depois, começamos a nos divertir com isso. Ariane é também como uma criança que adora ser levada para o mundo da imaginação e da fantasia. Nos permite uma liberdade sem limite, aceita e pede propostas, acredita exatamente como uma criança, mas percebe a mínima mentira e, por isso, coloca nosso alvo a ser atingido lá no alto. E com ela temos um luxo incomum que é o tempo.

Os Náufragos da Louca Esperança trazem elementos do cinema e das artes visuais. Atualmente o teatro tem se utilizado cada vez mais de recursos que não pertencem apenas a ele. Como é esse processo para o ator?

Neste espetáculo tudo foi feito diante dos olhos do público. Não havia nenhuma máquina, vídeo, geringonça. Os painéis eram carregados pelos atores, o texto projetado na língua do país onde estávamos representando, a voz dita por uma atriz a cada dia e nessa mesma língua. Não havia nenhuma arte visual, mas fico e ficamos lisonjeados por você ter tido tal impressão. Tudo foi feito como numa coreografia, não é? Rápido, coordenado e silencioso.

Qual sua reflexão sobre a arte de representar numa sociedade tão violenta, desigual e largamente absorvida pela cultura de massa?

Fico pasma, fico triste. Às vezes, me desespera, às vezes tenho confiança que o bem vai vencer. As ações no cotidiano são uma solução ao menos para nos dar mais leveza na alma. Agir no nosso perímetro possível. Não desistir. Educar.

Dos trabalhos que fez no teatro, cinema e televisão, quais escolheria?

Em primeiro lugar, Bodas de Sangue, minha primeira peça de teatro dito clássico. Em segundo, Possession, solo de 16 minutos, com dança e texto, meu primeiro prêmio . Em terceiro, As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant . Em quarto, Mão na Luva, primeira peça falada em português que fiz. Em quinto, Selva de Pedra, minha primeira novela. Em sexto, Les Atrides, primeira peça no Théâtre du Soleil . Em sétimo, Lavoura Arcaica, primeiro longa-metragem de minha carreira.

Do que sente falta e do que não sente falta alguma do Brasil, após tantos anos morando na Europa? É possível conciliar a vida pessoal com as turnês pelo mundo?

Sinto falta da umidade do ar e do calor. Da maneira gentil como as pessoas se comunicam, da familiaridade com as pessoas desconhecidas. As lembranças da infância, da adolescência, lembranças sempre felizes me acompanham pelas ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Não sinto falta dos atrasos nas horas de encontros marcados. Sim, é possível conciliar a vida pessoal com as turnês, pois houve uma escolha, mas não é fácil.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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