De que está à procura ?

Reino Unido

Portuguesa no Reino Unido: “Há legitimidade para não nos sentirmos bem-vindos”

A saída do Reino Unido da União Europeia (UE) continua a ser um dos temas mais falados da atualidade. Diariamente surgem (contra)informações sobre um tema que está longe de ser claro para a comunidade portuguesa (e, no geral, para todos). Enquanto as dúvidas e incertezas continuam a pairar pelo ar frio do Reino Unido, o BOM DIA falou com Débora Miranda, uma jovem portuguesa que viveu os últimos cinco anos em Londres e que é autora do “Embora – Sete anos entre o Norte e o Sul”, um livro que relata as suas experiências e a sua perceção das diferenças culturais entre Portugal e outros países.

Desde que partiu, em 2006, para fazer o programa Erasmus na cidade de Leipzig, Alemanha, Débora Miranda nunca mais parou. Viveu em Colónia, Bruxelas e Genebra, com passagens pela Turquia, Argentina e Estados Unidos da América. A sua última paragem foi Londres, o pretexto ideal para abordarmos o tema da saída do Reino Unido da UE. Além da sua opinião e partilha de episódios caricatos, que presenciou nestes primeiros dias pós-Brexit em solo inglês, a jovem deixa algumas críticas ao atual governo português.

Ficaste surpresa com o resultado do referendo ou, por algum motivo, já previas esta situação?

Nos meses que antecederam o referendo, sempre tive receio. Costumava dizer que o síndrome de ilha dos britânicos era suficientemente forte para os levar a votar para sair. Mas no dia da votação, perdi o receio: tinha passado o dia a cruzar-me com britânicos de autocolante na roupa a dizer “I’m in”, a ver janelas onde se lia “Vote Remain” e até a capa do jornal do metro, que sai ao final do dia, a indicar que as últimas sondagens davam a vitória ao Remain “Ficar”. Surpreendeu-me que se fizesse campanha no dia do voto, ainda que de forma informal, algo que é ilegal em Portugal; mas ajudou a que eu fosse dormir descansada. Quando o despertador tocou e eu li, de olhos ainda meio fechados, a mensagem de uma amiga jornalista sobre o resultado, levantei-me de repente e senti mesmo que tínhamos acabado de entrar num estado de guerra iminente. E confesso que tive um primeiro calafrio ao pensar “eles não nos querem cá”.

Quais as principais diferenças que notas na Londres de hoje comparativamente com a que te recebeu e onde viveste nos últimos cinco anos?

A cidade está tensa. Londres é conhecida, como de resto muitas capitais da sua dimensão, pela sua anonimidade e individualismo. Mas depois de saírem os resultados da votação, parece que nos olhamos mais nos olhos. Aconteceu-me uma senhora olhar para mim na rua e sorrir, aconteceu-me emocionar-me nos transportes ao ler notícias – e colegas meus disseram ter passado pelo mesmo.

Também tenho tido mais cuidado como cliente, sendo mais simpática em cafés e lojas para que não restem dúvidas que não sou preconceituosa. Fala-se até de um movimento que começou no Twitter, no qual pessoas usam um alfinete de dama na roupa para mostrar que não são xenófobas e é seguro andar perto delas. Pelo menos em Londres, todos estamos habituados a conviver, seja no metro, na rua ou no trabalho, com diferentes tons de pele, o som de várias línguas e sotaques, estilos de roupa, etc., e custa muito pensar que essa normalidade está em risco.

Na manhã do voto, o meu autocarro para o trabalho, que normalmente é muito silencioso, tinha várias pessoas a falar. Não me vou esquecer da incredulidade de uma alemã e de uma italiana que falavam ao telefone. E a minha chefe, que nasceu na Índia mas é britânica e casada com um norte-americano, comparou o ambiente do metro dessa manhã com o dia que se seguiu aos atentados terroristas de 2007.

Qual a opinião dos teus amigos ingleses sobre tudo isto? Consideras que é correto dizer que uma parte significativa da população jovem inglesa está contra esta saída do Reino Unido da UE?

Nenhum dos meus amigos votou para sair, mas ouvi várias histórias sobre quem votou, mesmo dentro de Londres – especialmente os pais deles. Há aliás, vários casos de “famílias partidas”.  À entrada do metro via-se muita gente a fazer campanha para ficar na UE. Mas também se vão conhecendo histórias sobre apoiantes do Brexit no seio de Londres, e de várias idades. No meu caso, tive 3 episódios que me surpreenderam particularmente:

– Num pub perto de Notting Hill, dois dias depois do referendo, ouvi dois ingleses a comentar que “se a Austrália e a Nova Zelândia também sobrevivem sozinhas, então o Reino Unido também não vai ter problemas”.

– Comentei com um motorista de Uber, britânico de pais paquistaneses, que não gostava de Boris Johnson e que não estava contente com o resultado do referendo. Ele disse-me que não achava que fosse um problema assim tão grande: “we’ll be fine”. Depois perguntou-me de onde eu era, respondi Portugal e ele perguntou se fazíamos parte da União Europeia.

– No dia do jogo Portugal vs. Polónia, estava num pub no centro de Londres que anunciava mostrar o jogo. Cinco minutos antes da partida, a televisão mostrava o campeonato de ténis em Wimbledon (que não estava anunciado à porta). Pedi ao empregado do bar, que não devia ter 30 anos, se podia mudar de canal porque eu era portuguesa e queria muito ver o hino. Respondeu-me “nós somos ingleses e está a dar um jogo em Wimbledon”. Numa situação normal, talvez o interpretasse como um inglês sarcástico, inofensivo. Mas depois de 24 de junho, comentários como aquele inevitavelmente causam desconforto. A minha primeira vontade foi a de retaliar e acusá-lo de discriminação, mas também tenho tentado forçar-me a não alimentar o ódio que vemos a crescer de ambos os lados. Não me sentindo bem-vinda ali, mudei de pub. Ironicamente senti-me melhor rodeada de polacos do que em frente a um empregado inglês.

aaaaa

Quais serão, na tua perspetiva, as consequências do “leave”para os portugueses e imigrantes em geral que vivem no Reino Unido?

Ninguém sabe ao certo quais são as implicações práticas para quem já está estabelecido por cá. Há muitas teorias, mas a estrutura política está a partir-se aos bocados e é impossível sequer saber se/ou como o voto vai ser posto em prática. Uma das maiores críticas que a campanha do Brexit teve foi precisamente a de não terem um plano para o pós-voto, porque no fundo quase ninguém acreditava que isto acontecesse, pelo menos para já.

No entanto, na minha opinião, as consequências não têm a ver com os vistos ou a segurança de trabalho. Para mim a maior desilusão é a da atitude de um povo de dizer, por maioria democrática, que não quer fazer parte da União Europeia. Inevitavelmente, para quem cá está a residir, a trabalhar, a pagar impostos, sejam quais forem as razões que os levaram a vir, e seja qual for o país de origem, há legitimidade para não nos sentirmos bem-vindos. Estar longe de casa já é suficientemente penoso em muitos aspetos, e eu acredito que essa sensação de que tanta gente, por menor que seja a percentagem, não nos queira cá, vai levar a que muitos deixem o país.

Sobretudo, senti-me profundamente ofendida quando li que o governo português está a incentivar os portugueses no Reino Unido a pedir cartão de residente. Se eu ainda cá morasse a tempo inteiro, já teria legitimidade para o fazer, porque vivi aqui cinco anos; mas e o bem-estar, não conta? Acham mesmo que temos vontade de pedir – quem sabe implorar – para que nos deixem ficar cá? Custava muito ao governo, em primeiro lugar, anunciar pelo menos o apoio moral, psicológico ou diplomático a todos aqueles que estão longe e se sentem discriminados? Ou vale tudo quando há receio de ver milhares de emigrantes retornados a pedir o subsídio de desemprego em Portugal (e principalmente de um governo que tanto criticou o anterior por incentivar a emigração)?

O que te levou a deixar Londres depois de vários anos a viver e a trabalhar na cidade? A tua vontade de descobrir algo diferente? Novas oportunidades? O conhecido stress londrino?

Nos meus cinco anos em Londres sempre tive uma relação de amor-ódio com a cidade, como de resto grande parte dos seus 11 milhões de habitantes. Londres dá-nos acesso a tantas oportunidades – profissionais, culturais, pessoais – que acaba por ser muito desgastante organizar o nosso tempo. Eu, que sou organizada e gosto de planear, cheguei a ter fases em que ficava em casa porque não tinha energia para escolher uma das mil coisas que há para fazer e organizar-me com outras pessoas. É um ritmo muito desgastante e poucas coisas se repetem – de lugares a pessoas – quase como se fosse um desperdício fazê-lo. Por vezes, tinha a sensação de viver uma rotina descartável.

A chuva e o cinzento certamente não ajudam, mas a verdade é que a Alemanha e a Bélgica também são cinzentas e não me desgastaram desta forma nos tempos em que vivi lá. Em novembro do ano passado, fui aos Estados Unidos em trabalho. No voo de regresso, o comandante, com o seu humor inglês, até pediu desculpa pela diferença de clima que iríamos notar entre Nova Iorque e Londres. Quando o trem de aterragem tocou no chão, senti o meu corpo a pedir para que o avião voltasse a descolar: não conseguia mais estar aqui. No dia seguinte conversei com a minha chefe e disse que não aguentava mais, mesmo não tendo um plano B. Em janeiro, deixei a minha casa e regressei ao único lugar onde me parecia simples estar em modo neutro: Portugal.

Nos últimos meses estive em Londres várias vezes em trabalho e notei imediatamente que já não fazia parte da cidade. Como alguém me descreveu, os londrinos vivem na cidade como ratinhos a correr nas suas rodas: só quando de lá conseguem sair é que param para pensar e se apercebem do ritmo a que andavam. Eu admiro muito quem consiga sobreviver a esse ritmo mais tempo do que os cinco anos que eu lá (sobre)vivi.

livro

Há alguma coisa do teu livro que tenhas escrito sobre Londres/os ingleses que faça todo o sentido relar neste momento?

É curioso como tive vontade de reler o que tinha escrito sobre Londres, sobretudo no meu primeiro ano. Destaco este excerto de um texto que intitulei “O nariz inglês”, a 19 de abril de 2012:

(…) Partilhei casa com alemães, franceses, holandeses, belgas, eslovacos, italianos. Mas foi no meio dos alemães que mais consegui integrar-me: pela hospitalidade, pelo interesse, pelo meu dever enquanto procurava no país deles as oportunidades que o meu não me deu. Pelos três anos em que o país deles foi a minha casa.

Aqui, a sensação foi muito diferente. Tive esperança de mudar de ideias, mas tempo suficiente passou para confirmar

que, em geral a maioria dos ingleses não se interessa. E isso tira a maioria da cor neste tempo em que transito. O meu mestrado era doméstico, por ter mais estudantes nacionais do que internacionais. Desde logo perdi o berço europeu e internacional que tão bem me acolheu na Alemanha, em Bruxelas, em Genebra. Quis à força integrar-me entre os ingleses, pois também eles me estavam a dar uma oportunidade. Mas desde o primeiro dia do meu curso senti um desconforto de desinteresse. De ouvir “Ah sim, Portugal? Eu já estive no Algarve” – e pouco mais.

Desde que cheguei a Leipzig de olhos e ouvidos esbugalhados para assimilar a língua-come-tostas, até ir embora três anos mais tarde, ouvi perguntas constantes sobre o meu país solarengo, como se diz isto em português, como é o nosso governo, qual é a taxa de desemprego, como é o trabalho na Deutsch Welle, se são estes os países que falam português, há quanto tempo falas alemão. De homens, mulheres, novos e velhos. Ausländer soava-me muito mais pejorativo do que foreigners, e no entanto é em solo britânico que parece haver mais desinteresse em relação aos que não são de cá. Londres pode não ser representativo do Reino Unido, e nem os milhões em Londres se deixam representar em meia dúzia de palavras. Justifiquei o desinteresse com o cosmopolitismo de uma metrópole, aberta ao mundo. Para um londrino é tão normal conviver com estrangeiros como com a chuva. Mas aos poucos apercebi-me que a maioria dos meus colegas não eram londrinos. E que esses e outros ingleses que ia conhecendo eram viajados, mas turistas; e teimam em dizer “vocês, europeus”; e que o que eu pudesse dizer sobre essa Europa era sempre uma afirmação e muito raramente a resposta a uma pergunta. O rótulo internacional de Londres pregou-me uma rasteira, e julgo falar por todos os que aqui vivem precisam de falar sobre o lugar de onde são.
Talvez os britânicos queiram mesmo manter o seu estatuto de ilha que outrora dominou o mundo. (E alguém ao meu lado no metro olha intrigado para o que estou a escrever). Ainda assim, acho que gosto de cá estar. Dos meus amigos ingleses, portugueses, europeus, mundiais. O meu trabalho preenche-me. Faz-me magicar sobre o que ainda quero fazer. E tiro o chapéu ao humor britânico, que tão bem faria aos alemães. Acaba por compensar a falta daqueles sorrisos de pertença – aos quais me tinha habituado sem dar conta”.

O livro

Pode adquirir o livro “Embora – Sete anos entre o Norte e o Sul” através da editora Chiado Editora ou em livrarias como a Fnac e a Bertrand. Em alternativa pode entrar em contacto direto com autora através do e-mail .

TÓPICOS

Siga-nos e receba as notícias do BOM DIA