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Eltânia André: a literatura do inusitado e do intangível

Mineira de Cataguases, extraordinário celeiro de artistas da mais alta relevância para o Brasil ao longo do século XX, atualmente morando em Lisboa, Eltânia André, psicóloga por formação, publicou primeiro livro, Meu nome agora é Jaque, em 2007, a que se seguiram Manhãs adiadas (2012), Para fugir dos vivos (2015) e Diolindas (2017), este último escrito em parceria com seu marido, o escritor Ronaldo Cagiano. Sobre Manhãs adiadas, muito oportunamente observou o escritor Menalton Braff: “Eltânia soube captar com extrema sensibilidade tanto conflitos interiores, de cunho mais metafísico, como a trepidação dos seres humanos espremidos em uma grande cidade.” Ainda este mês sairá seu novo livro de contos, intitulado Duelos.

Quando o contato com o universo dos livros?

Recorto um trecho de uma crônica que escrevi: “Não li Proust aos oito anos, em francês, nem A montanha mágica, na adolescência, ou Ulysses. Lia, sim, o que a escola exigia, mas lembro-me bem do que me caía nas mãos: os estoques de bang-bangs de bolso do meu irmão mais velho”. A literatura entrou em minha vida de uma maneira descompromissada. Hoje, necessito de uma rotina diária de leitura. Estou sempre lendo e se por algum motivo não leio, sinto-me desnutrida, como se não tivesse em contato com uma necessidade orgânica.

Ter nascido em Cataguases, cidade mineira que no século XX foi um celeiro de grandes artistas, teve algum significado especial para que se tornasse escritora?

Acredito que sim, mas não de uma maneira direta. Quando eu era adolescente, outro irmão lançou um livrinho de poesias e foi assim que descobri que havia essa possibilidade no mundo. Houve um tempo em que ele investiu na leitura, na construção das poesias, com o apoio dos intelectuais da cidade, coquetel de lançamento, noite de autógrafos, tendo eu participado de alguns desses processos, o que me despertou interesse e motivação pela escrita. Talvez ele tenha sido influenciado pelos grandes nomes da literatura de Cataguases. Eu, de uma maneira bastante sutil, fui seduzida pelo olhar do poeta que convivia conosco, em nossa casa.

Que autores considera essenciais em sua trajetória?

Os que ainda não li, pois são minha pulsão de vida. O que falta é sempre o que me move em direção ao desconhecido e inusitado.

A formação e o trabalho como psicóloga auxiliou em algum momento a de escritora?

Creio que sim, sobretudo a explorar o universo íntimo e subjetivo dos personagens. Na verdade, só sei escrever tendo como mote ou leitmotiv as matérias e circunstâncias do que me rodeia, da vida que pulsa, dos flagrantes do quotidiano que esperam um olhar detido, situações que estiveram ao meu alcance, seja como espectadora, seja como protagonista ou com a força do meu imaginário.

Sua prosa é sempre carregada de imensa poeticidade. Já pensou em escrever poesia?

A poesia está numa esfera superior. Ela sempre me desafia. Necessito parar diante de um poema na tentativa (ou ousadia?) de tocá-lo. Às vezes, preciso que alguém leia o poema para mim, preciso ouvir outra voz e não a minha. Se na condição de leitora eu esbarro com cautela e êxtase nesse universo concentrado e belo da poesia, seria uma ousadia maior a tentativa de escrever poesia. A poesia é maior que eu.

Outro aspecto marcante tanto em seu livro de estreia, Meu nome agora é Jaque, quanto em seu mais recente trabalho, Manhãs adiadas, é a coloquialidade da linguagem. A observação do cotidiano e da rotina das ruas teve papel decisivo nesse sentido?

Não apenas das ruas, mas também o que recolho da memória, dos acontecimentos explorados pela mídia, às vezes do mínimo movimento do mundo. Daquilo que me toca. Do que ficou incompleto. Da melancolia das coisas. Do inusitado e do intangível. Tenho a impressão de que os objetos que ficaram pelo caminho, perdidos, eu vou encaixando-os na minha ficção e dando sentido e forma para eles, assim eles se transformam em outra coisa. E há a força do inconsciente que direciona com avidez o que escrevo, sobretudo como escrevo: a escolha da linguagem é o que me emociona e o que dá força a meu texto.

Costuma conversar com seus leitores e ouvir as impressões que tiveram ao ler seu trabalho?

Seria muito interessante ouvir os leitores, mais interessante ainda se houvesse um número expressivo de leitores, meus livros foram editados por pequenas editoras, sem o impacto da mídia. Com dificuldade de acesso a grandes livrarias. Mas ainda assim, confesso que é gratificante quando tenho contato com as impressões de alguns amigos, leitores e ou críticos.

A mudança de uma cidade pacata, no interior de Minas, para uma metrópole trepidante, como São Paulo, influenciou sua produção literária?

Primeiro mudei-me de Cataguases para Belo Horizonte e na capital mineira vivi cerca de 15 anos. Depois passei uma curta temporada entre Conselheiro Lafaiete e Barbacena, onde fiz minha graduação em Psicologia, e somente no segundo semestre de 2009 fui para São Paulo. E há quase dois anos estou morando em Lisboa. Todo o percurso, por onde andei, onde estou, influencia a mim, em todos os aspectos, não apenas literariamente. Bom considerar ainda o que me transforma: os livros que li e lerei, uma experiência importante. Mas é também com o corpo que escrevo e com aquilo tudo que arrecadei. E até com a espera. Escrevo comigo inteira, não tem como ser diferente.

Há espaço no mercado editorial para os novos talentos? Como foi sua experiência?

Acho que a resposta para essa pergunta não será surpreendente. Pois, se pensarmos na internet, produção independente e nas pequenas editoras (com pequenas tiragens e sem distribuição nas livrarias), a resposta será afirmativa. Mas o espaço no mercado editorial das editoras de médio e grande porte, tanto para novos talentos quanto para alguns escritores que estão escrevendo há décadas, têm como crivo outros fatores e não mais (ou apenas) a qualidade literária. Penso (cá com os meus botões) que é preciso que o editor ou o departamento de marketing vislumbre uma boa possibilidade de venda para o ingresso do autor estreante em seu catálogo. É necessário, talvez, um pouco de sorte, ganhar um prêmio que lhe dê visibilidade, uma aposta midiática nas vendas – como os blogueiros de sucesso (o que não considero exatamente como literatura). Sabemos que se o autor enviar, sem nenhuma indicação prévia, os originais de seu livro para alguma editora, seja pelo correio ou meio eletrônico, receberá uma resposta automática, um não acompanhado de boa sorte e a grande maioria sequer será lido e/ou avaliado, tantos ficarão sem respostas. Meu livro de contos Manhãs Adiadas foi editado pela Dobra Editorial; o romance Para Fugir dos Vivos e o Diolindas, que escrevi junto com Ronaldo Cagiano, foram pela Patuá e nos próximos dias sairá o meu novo livro de contos, Duelos, também pelo editor Eduardo Lacerda, da Patuá.

Pode nos contar sobre o processo de elaboração do romance Diolindas, escrito a quatro mãos, com seu marido, o escritor Ronaldo Cagiano?

Costumo brincar que foi um romance ficcional dentro de um romance que se iniciava na vida real. Na época, eu morava em Barbacena e o Cagiano em São Paulo, éramos namorados, e a distância geográfica colaborou para que o livro fosse construído a quatro mãos. Cada um escrevia uma parte e o outro completava e tinha total liberdade de interferir no texto como um todo. Levamos mais de oito anos para lapidar e publicar o Diolindas, por isso, se nos perguntassem qual a parte que cada um escreveu não saberíamos responder. Penso que só foi possível porque estávamos vivendo em cidades diferentes, porque a literatura requer o contato com a solidão.

Vivendo em Portugal, como vê as ligações do país com o Brasil, sobretudo no campo literário?

Estou há pouco tempo em Portugal, mas tenho me dedicado a explorar o universo literário lusitano. Ano passado, li, sobretudo, literatura feita por mulheres e posso garantir que como leitora fiquei muito entusiasmada com a potência narrativa e a qualidade dos textos. Grandes autoras, que têm pouca visibilidade ou são completamente desconhecidas no Brasil como: Maria Velho da Costa, Hélia Correia, Teolinda Gersão, Lídia Jorge, Inês Lourenço, Maria Judite de Carvalho, Natália Correia, Ana Margarida de Carvalho, Fiama Hasse Pais Brandão, Maria Judite de Carvalho, Gisela Gracias Ramos Rosa, Luiza Neto Jorge e tantas outras que não citei ou que ainda não li. Há nomes conhecidos no mercado editorial do Brasil, como Dulce Maria Cardoso, Maria Teresa Horta, Sophia de M. B. Andresen, Agustina Bessa-Luis, Maria Gabriela Llansol, Flobela Espanca, Adília Lopes. Entretanto, tenho conhecimento de um programa de apoio à edição de autores portugueses e africanos de língua portuguesa para publicação de livro por editoras brasileiras, promovido pela DGLAB (Direção Geral do Livro dos Arquivos e das Bibliotecas), pelo Ministério da Cultura de Portugal. E há também o mainstream nos dois países e desses não preciso falar, já são conhecidos do público brasileiro e do português. Quanto à publicação de brasileiros em Portugal, penso que o mercado daqui também desconhece grandes autores que estão fora das vitrinas (mas o mercado editorial brasileiro, talvez, também os ignore, o que não quer dizer que sejam excelentes autores, grande maioria publicado por pequenas editoras – viva as pequenas editoras!). Tenho escutado bastante reclamação de brasileiros, dizendo que o mercado português é (ou está) ainda mais fechado para autores brasileiros. Citei aqui apenas as escritoras portuguesas, simplesmente como uma homenagem às mulheres, há excelentes escritores que já lia no Brasil e outros que fiquei conhecendo assim que cheguei a Portugal.

Sobre os autores da entrevista: Angelo Mendes Corrêa é mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), professor e jornalista. Itamar Santos é mestre em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP), professor, ator e jornalista.

 

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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