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Crónicas da vida real: Clarinha – parte 2

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Quantos, defensores dos valores e ensinamentos de Cristo, se esqueceram das suas palavras mais importantes, e não isentos de pecado, te atiraram a primeira pedra, te cuspiram na cara.

Ao fadário de uma vida atribulada, tortuosa e cheia de percalços, a dependência pelas drogas deixou um rasto de alegrias falsas e ilusões perdidas, de euforias desmedidas e sem controle, de perdas, de sofrimento, de raivas e ódios, e a isso, como sobremesa às entradas e ao prato principal, servem-se quatro anos de prisão, um cardápio de humilhações e misérias, a perda da guarda das filhas menores e um bebé para adoção.

A história da Clarinha é a história de muitas Clarinhas em qualquer parte do território inglês, português, ou outro qualquer território do planeta terra onde haja vida humana.

Clarinha, Clarinha, e esse bebé que trazes dentro de ti e ao qual nem sequer poderás escolher o nome para lhe dar. Primeiro foram as filhas menores que te arrancaram dos teus dias de miséria e luta, que só tu e Deus sabem as lágrimas de sangue derramadas, os pedidos de ajuda divina nos momentos de maior perdição, e o maldito vício sempre a sobrepor-se e a levar a melhor. Que raio, isto é vida real, e no entanto, quantos não te bateram com a porta na cara, quantos não te apontaram o dedo, quantos, defensores dos valores e ensinamentos de Cristo, se esqueceram das suas palavras mais importantes, e não isentos de pecado, te atiraram a primeira pedra, te cuspiram na cara.

Curiosamente, quando, contra tudo e contra todos, contra acima de tudo, todas as expectativas, levam-te as filhas dos braços, e outros pais babosos, mais capacitados do que tu, levam o teu bebé por quem te vejo chorar tantas vezes num desespero que só posso imaginar o quanto te dói, precisamente quando procuras ajuda, como se estivesses no meio do rio a afogar, à procura desesperadamente de algo a que te possas agarrar. Raios parta a heroína e a merda do crack. Soltaste esse diabo e tens uma carga de trabalhos para o amarrar a cadeados, e mesmo que o consigas, e vais conseguir Clarinha, não poderás nunca te aproximar dele pois tem maldade, arte e engenho para te iludir e te ludibriar para que o soltes. Lembra-te que cada vez que o faças, torná-lo mais forte.

Clarinha, se não fosse despropositado, apetecia-me dizer-te que uma flecha só pode ser lançada quando, depois de a colocares no arco, a puxas para trás, e talvez a vida que te tem arrastado em dificuldades te esteja a preparar para te lançar em algo grandioso. Mantem-te focada e acredita.
E quem te vê pela primeira vez Clarinha, até chega a pensar que és desprovida de qualquer sentimento que não seja o egoísmo. É que sabes…não é um julgamento, é apenas a constatação de um facto, uma vez que apegado à dependência de qualquer vicio, além do egocentrismo, está também o egoísmo. Consequências naturais de quem perdeu o domínio da sua vida em detrimento da impotência de a mudar quando o vício a controla.

Mas é errado pensar que não tens outros sentimentos tão nobres quanto a pessoa que o és, limpa de drogas, saída de um inferno que te manteve prisioneira no que de mais inumano se pode descer, quando tu não és tu, mas sim o resultado do teu vício que não dominas.

Sim, o teu bebé, o teu filho recém-nascido, foi entregue para adoção. Que outra alternativa tinhas tu se os serviços sociais já te haviam prometido tirar-to dos braços para eles mesmos tratar desse penoso passo. Leis Clarinha… Leis, morais, lógica e melhores opções, nem sempre combinam muito bem (…)
Clarinha, tu mesma admitiste que não tinhas condições para cuidar deste bebé da maneira que ele merecia. Admitiste, aceitaste, mesmo sem pensar profundamente nas consequências desse ato de coragem tão digno quanto nobre e penoso. E tiveste que decidir, sem teres ninguém a quem pedir ajuda, a não ser às instituições que como já te apresenta esclarecido, seguem leis, e procedimentos, e regras, e papeis e formulários… E a família, que seguiria outras regras baseadas em amor, tolerância, perdão, aquilo que as famílias normalmente fazem, a família essa foi a primeira a descartar-te. O desespero por vezes leva a resoluções insensatas e irresolutas, irrefutavelmente precipitadas.

Admiro-te por admitires a tua quota parte de culpa nisso.

Tiveste que decidir quando emergias tão recentemente de um inferno ao qual estiveste amarrada grande parte da tua vida, com recentes e ainda muito vivos e ativos, fantasmas dos quais tentas desesperadamente fugir.

Depois, à medida que a barriga ganhava contornos definidos da forma do bebé, observei-te muitas vezes de olhar perdido, distante, a acariciar a barriga com a palma da mão, de maneira suave e carinhosa, em círculos, como se estivesses a acalmar os medos e as agitações de um bebé que parecia prever dias de tumultuosa vida da qual ainda não vira luz (…)

E essa tua natureza de mãe, tu que passas dias de desespero e profunda e inimaginável dor pela ausência das meninas a quem o tribunal entregou ao pai e à madrasta, tu que te recusas a subir ao andar de cima para não dares de caras com o quarto delas que te traz imediatamente recordações e saudades que só tu sabes o quanto doem realmente, fazes-me perceber que, apesar dessa tua vida intricada, és uma mãe que ama as suas filhas, por muito que isso possa parecer difícil de entender a quem não sabe o que a vida real é, (…)

(Continua…)

(Excerto de “Crónicas da vida real”)

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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