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Claire: crónica de uma toxicodependente

Claire está prenha, e quando chegar a hora irá parir um moço ou uma rapariga.

Ela mesma nasceu num berço de palha e é filha da desgraça e da decadência. Se não fosse, estaria grávida e daria à luz um lindo bebé, fosse ele menino ou menina.

Abracei Claire, não por pena, muito menos por assédio sexual. Abracei-a porque às vezes me apetece abraçar todos os filhos de um deus menor e de lhes dizer que afinal, no mais básico, no mais comum e no mais elementar, somos todos iguais. E depois o que nos diferencia, o que nos separa uns dos outros, são os perfumes caros, a roupa de alta costura, os sapatos de grandes designers, os carros de topo de gama, os desodorizantes baratos, a roupa em segunda mão, os sapatos velhos e rompidos, os carros que não pegam, e quando pegam, mesmo em curtas distâncias fartam-se de resmungar, às vezes num berreiro que chega a ser embaraçoso. O berço…

Abracei Claire porque na falha entre dentes maltratados, outros dentes o vício que lhe vai minando a saúde, já levou, há um sorriso que teima em não se manifestar porque a vida de miséria que tem levado lhe retrai essa vontade de o soltar.

Digo-lhe… – You not going anywhere without my hug.

E ela baixa os olhos para que não se lhe note com muitas evidências a tristeza que lhe embarga a voz e lhe amortece o som. Fico sem saber se é só tristeza, ou se é timidez.

– Of course i’m not.

E esta pequena frase, sei que a disse porque lha li no mexer dos lábios. De resto, não falou mais. Levantou um pouco a cabeça para me dar o tal abraço e vi que tinha os olhos cheios de lágrimas, que lhe ficaram a boiar no glóbulo ocular, indecisas, sem saberem para onde cair. Conteve-as, e eu, sem saber o que dizer, abracei-a com vontade de absorver os problemas do mundo e carregá-los eu, e como que aflito por ter de dizer algo, que se calhar até era desnecessário, segredei-lhe…

– It’s going to be alright.

E a resposta dela foi dada quando apertou os olhos e as lágrimas rebentaram, escorregando pela cara abaixo. Soluçou por uns segundos, e ciente de que, a certas pessoas não lhes é permitido expressar a dor, com um esforço que se notou intenso, engoliu os soluços que certamente lhe foram rebentar dentro do peito.

O vício maldito vai-lhe tirando a vida um pouco a cada dia que passa. Mas já lhe roubou as duas filhas menores por quem chora, sempre que na casa onde a miséria se passeia livre e arrogante, triunfante por ser rainha, está ela a lutar sozinha contra uma série de fantasmas que tem imensa dificuldade de vencer. O vício que como uma morrinha se lhe pega ao pensamento, uma tristeza que não descola, que lhe lembra as miúdas a todo o momento. O silêncio do barulho delas é ainda das piores coisas com que tem de lutar.

Tem direito a ver as miúdas uma vez por semana, algumas horas, nesse dia, que mesmo assim anseia. Chora de cada vez que fala nelas. Elas precisam dela. “They need me”. Dizem-lhe – I love you mummy. Please don’t cry”. Mas ela chora, chora sempre. Depois, bem depois a certeza de que o moço ou a rapariga que carrega na barriga, assim que nasça, lhe será tirado dos braços para conhecer outra família que “will provide him with a better life, that i’m not capable to.” confessou.

O vício não poupa, muito menos tem piedade daqueles a que a ele ficam agarrados, mas se, os que nele se destroem vêm de uma posição social outrora motivo de orgulho, se têm formação académica, se são inteligentes, se parecem, aos olhos da sociedade, um exemplo de sucesso, até que a dependência os ponha a descoberto, e a vida se lhes desmorone à sua volta, coitadinhos que tiveram a infelicidade de tocar no fruto proibido. Raios parta o vício que destrui um talento que tinha tudo para ser sucedido, na vida.

Mas Claire… pobre coitada que não tem juízo nenhum. Nunca teve. Nasceu com a sina talhada. Previam-se todos os caminhos errantes pelos quais enveredou.

Na escola era rebelde. Não aprendia e era burra. Mas audácia para a malandrice não lhe faltava.

Ainda tenra de idade fumava tantos cigarros que diziam até, que os comia, num porte de adulto que bebe cerveja ao balcão do café, que dispensa o copo e raramente pousa a garrafa em outro sitio que não seja bem segura na mão fechada que a abraça, mantendo-a quase sempre colada aos lábios, ou numa curta distância entre a boca e o gargalo, que vai mantendo, para falar de assuntos tão banais como o futebol, ou a mulher a quem se acostumou a dar porrada com a mesma paixão com que entre bebedeiras experimenta com ela uns rápidos estremeções, ficando logo de seguida a roncar que nem um porco, e a babar a almofada enquanto dorme.

Claire nunca ouviu os estremeções, mas ouviu os outros gemidos, aqueles de quem suporta todos esses abusos que se prolongam por uma vida inteira que não é vida, e tenta abafar esses sons do desespero, com a almofada apertada pelas mãos contra as orelhas, enquanto esses gemidos de dor resignada e de vergonha e nojo misturado se fundem com aquele arfar de macho filho da puta. E quanto mais força Claire faz, para que os sons se distanciem dos seus tormentos, mais eles furam a almofada e se vão penetrar dentro dos seus ouvidos instalando-se dentro da sua raiva, que depois irá descarregar na escola, nos cigarros que, “ela não os fuma, ela come-os”, e no mau comportamento que tem.

Mas Claire não era burra não senhor. Claire não aprendeu os desígnios da escola, porque no berço onde nasceu estava a miséria que a criou, a ignorância que a retraiu, a falta de um amor que não existiu, a raiva que lhe serviu de colchão. E agora que vai ganhando maturidade, mesmo quando já se deixou agarrar por uma dependência que torna a sua obsessão doentia, difícil de controlar, procura em desespero de quem se está a afogar, algo onde se possa agarrar para emergir do inferno de onde quer ser resgatada.

Claire, Claire, como eu te entendo. Quero-te ajudar e não sei como.

Ando às voltas com este pensamento que me corrói por dentro.

Ela diz, – I Know I can’t get attached to this child…

E eu, fico ali a olhar, a ouvir os seus desabafos que espalha por uma sala com cerca de vinte pessoas que a compreendem melhor do que ninguém, mas que como eu, nada podem fazer.

Ando às voltas com este pensamento que me corrói por dentro.

Ela diz-me…

-Thanks Balthazar…

E depois desaparece no escuro da noite, e a brisa de ar gelado que teimosamente lhe sopra nas faces, vai-lhe secando as lágrimas deixando-as timbradas num rosto triste e desesperançado.

Volta a casa onde a tristeza, a solidão e o desespero a esperam, no estalar dos móveis, nos repentinos e curtos fluxos do radiador, e outros pequenos barulhos do silêncio da noite.

I know I can’t get attached to this child…”

E quase inconscientemente vai passando a mão pela barriga que cresce a cada dia que passa, em gestos de caricia e cuidados, falando quem sabe, com o pensamento, com a criança, que com toda a certeza será um lindo bebé, mas não o seu bebé.

E tu Claire, quando chegar a hora desse bebé que te suga a vida, nascer!?

Quando, ainda quente to arrancarem dos braços para o colocarem nos braços daqueles para quem o carregaste durante o tempo de gestação, lutando contra a tua natureza de mãe, e contra os teus fantasmas, numa luta desigual, numa luta que te foi sugando a vida, porque o vício te atormenta a toda a hora e a todo o momento, que irás fazer?

Quando os sons do choro da criança te forem esvanecendo dos ouvidos, deixando apenas uma memória que com certeza irá doer, espalhada na tua mente, quando essa criança que te foi sugando a vida, e a qual, quase de maneira inconscientemente consciente, acariciaste com a palma da tua mão, com a tua natureza de mãe, como quem acalma o alvoroço de um ser que pressente as agitações da vida que o espera, que irás fazer! Que irás sentir. Quais serão os sentimentos da tua natureza de mãe, boa mãe por sinal, não fosse o maldito vício que te consome. O que irá ser de ti!? O que irá ser dos teus sentimentos e do teu problema que teima em te destruir!

E eu, ando às voltas com este pensamento que me corrói por dentro.

Estás sozinha no mundo Claire. Quer dizer, tens a minha amizade e a amizade de todos os outros que melhor do que ninguém sabem compreender o dilema que vives. Mas não tens uma família que te possa ajudar. Estás sozinha. Por isso, já te tiraram as outras miúdas, e agora esse bebé que vem a caminho.

E eu, e nós, só podemos abraçar-te, e com o nosso abraço, apertando-te bem firme contra o calor da nossa amizade, dizer-te sem palavras, que estamos contigo, que juntos vamos conseguir dominar esse vício maldito que te mata, e com o tempo, quem sabe, as coisas vão-se encaixando no seu devido lugar. O importante é que não desistas.

Mas eu, continuo às voltas com este pensamento que me corrói por dentro.

Como vai ser quando chegar a hora? Como vai ser quando, ainda quente te arrancarem o bebé dos braços para o colocarem nos braços de uma outra mãe que “lhe irá proporcionar a vida que tu não podes proporcionar!?” É isso um ato de grande coragem, de um amor sem limites, ou é isso um ato de fraqueza e cobardia?

E o futuro? O que reservará o futuro, para ti e para o bebé. O que reservará o futuro para a tua dependência com as drogas?

Será justo, porque és mãe, porque nasceste num berço de palha onde a miséria e a revolta te foi servindo de colchão, onde por artes do diabo te tornaste prisioneira de um vício que te vai destruindo, condenar essa criança a tais sortes que por muito que lutes, não consegues mudar!? Será justo privar essa criança de um futuro mais promissor, que uma outra mãe, provavelmente uma boa mãe, mesmo que a criança não lhe venha de dentro de si, lhe poderá proporcionar?

E eu, continuo às voltas com este pensamento que me corrói por dentro, sentindo fundo a debilidade com que a minha incapacidade de te poder ajudar, me fere por dentro, não sabendo sequer, se a crueldade está em que te arranquem o recém-nascido dos braços quando chegada a hora, ou se está no facto de jogar o seu futuro nas mãos da dependência e da miséria que esta arrasta consigo.

Seja de que maneira for, só espero que não desistas de lutar pela tua recuperação, e com o tempo, quem sabe, todas as peças do puzzle da vida se encaixem no seu devido lugar.

Força Claire, não desistas, pelo amor desse que será com toda a certeza, um lindo bebé…!

António Magalhães

Esta publicação é da responsabilidade exclusiva do seu autor.

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