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Bispo vermelho

Aquela entrevista, nos idos anos 80, teria impacto na ainda pueril carreira do jornalista que ousava dedicar-se a um tema editorialmente difícil. “A Igreja tem de ser a voz dos sem voz”. Ali estava uma âncora de frescura. Uma oportunidade de trazer a vivência eclesial, com todas as suas contradições e tensões, para a rama da informação. Pela voz de um homem de pequena envergadura, sorridente, que apoiava as palavras com o movimento das mãos dando-lhes a consistência de uma presença. Quando, na sua pronúncia do norte, o bispo Manuel Martins falava das “injustiças” e da “dignidade da pessoa humana”, soava a poesia prática e assertiva.

Discípulo do pensamento de António Ferreira Gomes, e tal como Hélder Câmara, Manuel Martins dava o corpo e a alma à coerência evangélica. Com coragem, com frontalidades que lhe valiam inimigos e dissabores, mas com o respeito de todos. Sobretudo dos que se reviam naquele bispo combativo, dos mais pobres e humildes, dos desempregados, dos que não conseguiam chegar aos frios guichés da burocracia e da caridade, dos que na península de Setúbal trabalhavam sem receber salário. As periferias, de que agora tanto se fala, eram o espaço pastoral e social do bispo Manuel Martins.

Chegou à então recém-criada diocese de Setúbal em 1975. Moldou a ação à época pós-revolucionária. Quando a cintura industrial cedeu na península e as fracturas sociais alastraram, não hesitou em tomar partido pelas pessoas. Com a força da denúncia ou com a ação discreta e empenhada, no terreno, fazia pontes. Recebia trabalhadores e sindicalistas, batia à porta de políticos e empresários, andava pelas ruas da cidade ao encontro dos que das ruas da cidade faziam casa, sem teto, por imposição do desemprego ou apanhados depois nas redes da droga. A Cáritas de Setúbal, instituição solidária da Igreja, transformar-se-ia num refúgio para muitas destas pessoas. Também com o incentivo de Manuel Martins, havia em Setúbal uma tradição de padres operários. Nas fábricas, ombro a ombro, incentivavam os trabalhadores a reivindicar a dignidade. Alguns optaram pela política partidária e pelo movimento sindical, outro território de ação que o bispo acabaria por compreender.

São conhecidas as altercações com os poderes políticos. Martins denunciou a fome na península quando parecia que Lisboa não queria falar de tão incómodo assunto. Mário Soares e Cavaco Silva terão ficado muitas vezes com as orelhas vermelhas. Mais tarde, Soares diria em público que aqueles gritos de alerta do bispo de Setúbal lhe tinham feito bem.

Manuel Martins entendia que “a Igreja devia ser de esquerda e não de direita” (TSF, 26 março 2017). A expressão tem um contexto e deriva de uma visão própria sobre os critérios definidores do espectro político. Mas é esclarecedora quanto à forma como Manuel Martins posicionava a acção fundada no evangelho para a intervenção política e social. A Igreja “tem medo” (SIC, 22 fevereiro 2014), dizia, “e mudou o Credo, que passou a ser ‘creio na Santa Igreja, católica, apostólica e… adormecida'”, criticava.

Era um homem por vezes difícil de localizar, mas afável e disponível. Numa fria madrugada de novembro de 1991, recebeu no Paço a chamada de uma rádio a solicitar um comentário sobre a situação em Dili. Não só se disponibilizou, como esteve uma boa meia hora à conversa com o jornalista antes de entrar na emissão. Timor-Leste seria desde a primeira hora outra das suas causas visíveis, numa altura em que, pela tradição da prudência ou por desconhecimento, a diplomacia da Santa Sé e o clero em Portugal ainda hesitavam no alinhamento dos discursos. Chegou a fazer circular uma carta dirigida aos bispos europeus para que se unissem por Timor. Casalori repreendeu-o e proibiu-o de prosseguir com a ação.

Há uma vida de histórias reveladoras da personalidade. Quando chegou a Setúbal, foi, discreto e sem se identificar, assistir a um culto numa igreja protestante local. As cortes locais dos partidos mais à direita chegaram a recusar ir a missas presididas pelo “bispo vermelho”. E que dirá aquela mulher que inadvertidamente deitou as chaves de casa no lixo e viu o bispo mergulhar no contentor para a ajudar a encontrá-las?

A morte é a mais previsível das contingências humanas. Morte física, porque a outra fica ao abrigo da fé e das interpretações filosóficas ou religiosas. Se pela condição da idade, estaríamos à espera da partida de Manuel Martins, já a morte recente de António Francisco dos Santos apanhou a Igreja e o país de surpresa. Manuel Martins sofreu muito com a morte precoce do bispo do Porto.

Não fomos a tempo de os juntar à mesa do café para registar a revisão sintonizada de memórias e leituras deste tempo de perplexidades. Devem estar juntos noutra dimensão, a limpar as arestas da Igreja e do mundo. Ou a usar o sentido de humor que os caracterizava – por vezes cáustico e incisivo na voz de Manuel Martins – para medir as acusações de heresia feitas ao Papa Francisco por um grupo de católicos integristas…

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