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A morte do Rei

Quando o Rei fazia anos havia festa rija na aldeia. Com pompa e circunstância como costumam ser festejados tais eventos em qualquer parte do mundo. Só que o Rei a que nos referimos era um rei sem coroa e sem descendestes, rei “eleito” pelo povo da aldeia, de forma espontânea e sem campanhas pré-concebidas. Tinha perfil e pronto!

O ser ar afidalgado, o seu porte nobre, a forma impecável como se apresentava aos seus “súbditos” – polainas, laçarote, camisa de peito engomado, grosso cordão de ouro segurando maciço relógio e gestos delicados, davam-lhe o ar imponente e majestoso dum rei. Mas de um rei amado e respeitado que não cobrava impostos, não recusava nunca uma audiência, por mais humilde que fosse o visitante…

Como íamos dizendo, quando o Rei fazia anos havia festa rija na aldeia.

Era em maio, o mês das flores, quando as cerejas já reluziam por entre os verdes ramos e, no monte, as giestas cobriam de amarelo a encosta do Rochão, mesmo em frente a S. Cipriano.

Era ali, no sopé da montanha, que o Rei mandava que se abrissem as portas do seu palacete, convidava todos a entrar e a participar na festa do seu aniversário.

Depois, do alto da escadaria, saudava os amigos, que eram todos os habitantes da aldeia, mais as dezenas que vinham das freguesias vizinhas, e com eles comia a merenda para depois dizer coisas tão belas e tão elevadas como só os grandes reis sabem dizer…

Foi assim durante mais de meio século. Um ritual que já se tornara lendário e cujo objetivo comum consistia num abraço fraterno entre o Rei e o seu povo: beberem da sua adega, comerem do seu pão, saborearem o churrasco de porco.

Logo pela manhãzinha estoiravam os morteiros, correspondentes ao número de anos festejados. Depois era a entrada fulgurante da Banda Filarmónica “A Velha”, de S. Cipriano, de quem era acérrimo defensor, que exibia durante o dia números do seu vasto repertório.

Comia-se, cantava-se e dançava-se.

Por fim, davam-se vivas ao Rei. O Rei agradecia e em seguida regressava aos seus aposentos para só voltar ao convívio coletivo praticamente um ano depois para confraternizar de novo com a “plebe”.

O Rei, apesar de estimado, era um homem só. O seu mundo era a biblioteca que herdara do avô, como do avô herdara o palacete, a quinta, a voz, os gestos, a nobreza, o sangue…

Os seus domínios limitavam-se à casa e à quinta que a cercava. Reinava com discrição. Não usava, e muito menos abusava, das suas prerrogativas de aplicar impostos, taxas ou outros encargos. Não era tirano nem déspota…

Neste último dia em que o Rei fez anos o sol despontou ainda mais brilhante, os morteiros ribombaram com maior estridência, a banda tocou com mais alegria, o povo acorreu em massa a concentrar-se no largo fronteiriço. As portas da sua casa mais uma vez se abriram para o receber.

Comeu-se, bebeu-se, cantou-se e dançou-se. Houve, mais uma vez, festa rija…

Entretanto, no seu desconfortável quarto da mansão, despido de riquezas, sem coroa e sem descendentes, o Rei agonizava. Mas cumpria-se a sua última vontade: festejar, como sempre, o dia do seu aniversário, que foi também o da sua morte.

E quando, finalmente, à hora a que o Rei devia aparecer para saudar o seu povo fiel, a fatídica notícia chegou, a multidão, ainda incrédula, gritou:

– O Rei morreu! O Rei morreu!…

E pela primeira vez ninguém ousou clamar: “O Rei morreu, viva o Rei!…”

 

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